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Intelectuais distorceram reflexão sobre liberalismo, fascismo e Bolsonaro

Christian Dunker

07/08/2020 04h00

Jair Bolsonaro na rampa do Palácio do Planalto (Alan Santos / PR)

Em resposta ao texto que elaboramos sobre as afinidades do bolsonarismo com o fascismo, publicado em Ilustríssima, na Folha de S.Paulo, um grupo de pensadores reagiu com um artigo sobre "Desafios de uma Sociedade Aberta".

Nosso artigo partiu de uma caracterização clara para examinar a hipótese do fascismo à brasileira: a proposta de armar a população brasileira, as agressões físicas e as tentativas de intimidação a jornalistas e membros do STF, a formação de grupos armados e milicianos ligados ao bolsonarismo [1].

Reconhecendo a complexidade definicional do fascismo, escolhemos fixá-lo como um tipo de discurso e um conjunto de estratégias, que, e essa era nossa pergunta, haveria de ter algum precedente histórico em nosso país. Foi assim que chegamos tanto ao integralismo de Plínio Salgado, quanto a ditadura militar brasileira e seus temas como a violência em nome da defesa da família e da alma brasileira.

Era uma forma de caracterizar historicamente o paralelismo entre bolsonarismo – em sua dupla base de defensores da violência como método – e do neopentecostalismo de resultados – como instrumento de moralização da política.

A aliança entre Deus e Nação, cuja retórica dominante é a do líder pai capitaneando seus filhos e irmãos e localizando seus adversários como inimigos corrompidos, justifica o traço de mobilização das massas característico do fascismo.

Nosso artigo acentua que o nexo econômico deste novo fascismo é confuso. Submisso a outra potência estrangeira, mas desmonta aspectos do Estado protetor. Reduz o impacto da Constituição de 1988, em acordo com uma agenda de austeridade, mas se atrapalha nas reformas tributária, administrativa e previdenciária, que até aqui dependeram mais do legislativo. Reconhecemos a anomalia de Bolsonaro neste caso:

"É verdade que a maior parte das experiências historicamente identificadas como fascistas não foram economicamente liberais, bem ao contrário, mas isso não quer dizer que exista uma relação unívoca entre fascismo e estatismo." [2]

Nossa hipótese de fundo é de que o bolsonarismo realizou uma aliança entre conservadores-autoritários e fascistas. Este casamento foi realizado sob a égide da luta comum contra o petismo e a corrupção, em nome do impulso anti-institucional e da antirrepresentação política. Ele fez ressurgir os piores capítulos de nossa história política: a glorificação de torturadores, o menosprezo pelas minorias, a confrontação com o judiciário, a convocação para o golpe.

Nossa preocupação primeira e final, neste texto é com violência, militarização e  arbitrariedade. Nele a associação do fascismo com o liberalismo é assumidamente contingente, como o leitor pode conferir acima. Portanto, qual não é a surpresa quando um grupo organizado intelectualmente começa declarando que:

"Não é intelectualmente honesto argumentar que exista qualquer conjunto de ideias e fatos históricos que liguem liberalismo e fascismo." [3]

A afirmação é falsa, não corresponde ao que se enuncia em nosso artigo e exemplifica exatamente o tipo de retórica ofensiva e desqualificativa que estamos criticando. Ela é falsa porque Ludwig Von Mises, prócere neoliberal, que dá nome ao instituto que reúne nossos críticos, declarou:

"Não se pode negar que o fascismo e movimentos semelhantes, visando o estabelecimento de ditaduras, são cheios de boas intenções e que sua intervenção, em dado momento, salvou a civilização europeia. O mérito que o fascismo ganhou assim, por si só viverá eternamente na história." [4]

Portanto, há uma afinidade de ideias entre liberalismo e fascismo. Se de fato o fascismo viverá eternamente na história porque ele não poderia voltar no Brasil de nossos dias?

Uma leitura honesta de nosso texto teria destacado passagens onde afirmamos que o bolsonarismo inverte "o discurso de proteção", que costuma caracterizar o fascismo, em submissão ao trumpismo:

"(…) política econômica ultraliberal de destruição planejada da capacidade de intervenção do Estado. Este traço não estava presente na experiência pretérita do integralismo (…)". [5]

Qual a dificuldade em ler esta cláusula de exceção? Qual a dificuldade em perceber que o objetivo de nosso texto é o discurso e estratégia fascista em Bolsonaro e não responder a pergunta que parece corroer a consciência de nosso interlocutores: o fascismo é um liberalismo?

Nossos críticos acabam por retratar, ao modo de paródia involuntária, a própria tese que queríamos demonstrar. Fugindo da hipótese que levantamos, o texto retoma a narrativa de ocasião sobre "o sonho comum de comunistas e fascistas". Como se Plínio Salgado fosse a comunista.

O texto avança com expressões anacrônicas como "fúria bolchevique". Sobre o ódio e violência do discurso bolsonarista, nem uma palavra. Talvez porque tenhamos aqui um exemplo derivado de sua retórica. Seja agressivo, desqualificativo e acuse os outros para depois colocar a culpa da polarização na falta de tolerância. Como se bastasse ativar o botão "anticomunismo" para todas as razões se ajoelhassem.

Continuemos com a deriva.

Sim, Getúlio Vargas teve uma relação ambígua com os fascismos, mas será que esta ambiguidade com o liberalismo também não faz parte da volta dos fascismos?

Sim, o fascismo perseguiu líderes liberais, mas ele também atacou líderes comunistas.

Sim, "sociedades abertas se definem pelo desacordo, pela legitimidade do outro e pelo debate equilibrado", mas não, isso não pode ser feito acusando aqueles que não concordam conosco de "desonestos intelectualmente".

Sim, Bolsonaro foi eleito democraticamente, em alternância de poder, em meio a polarização política da sociedade, mas não, de jeito nenhum isso foi obra do "Fora FHC", iniciado pelo PT vinte anos atrás.

Em vez de admitir que talvez, ao menos em parte, Bolsonaro tenha sido eleito também por sua plataforma neoliberal de Posto Ypiranga, nossos adversários apontam uma epigênese no conflito político no genérico "Fora FHC", como se não tivesse havido um "Fora Sarney," um "Fora Collor".

O ministro da Economia Paulo Guedes (Divulgação)

Contudo, o máximo da negação e da recusa a admitir o teor agressivamente problemático do bolsonarismo acontece quando nossos críticos chamam de "transição exemplar na vida republicana brasileira" os três anos em que afastou-se uma presidente, subiu ao poder um vice compromissado com a corrupção, aprisionou-se políticos, incluindo um líder da câmara e um ex-presidente, em meio ao alto grau de instabilidade jurídica, institucional e crise econômica. É como dizer que "fizemos uma transição exemplar pela covid-19 porque só morreram 100 mil pessoas, as outras sobreviveram, e viva nossas instituições".

Depois disso o texto se espraia em divagações sobre o impacto das tecnologias digitais na política, as ditaduras de Castro e da Venezuela, o BNDES.

A enunciação do texto mobiliza imagens negativa da esquerda, em vez de enfrentar os argumentos. Quando estamos quase cansando desta retórica aparece um ponto de potencial convergência com o que dizemos:

"[Paulo] Guedes é um nome historicamente vinculado ao pensamento liberal no país, mas sua agenda dispõe de um consenso frágil dentro do governo (…)". [6]

Nosso texto sugere que o casamento entre liberais-conservadores e fascistas é a causa da ascensão de Bolsonaro. A polarização, o ódio e a esquerda "hegemônica" são efeitos. É exatamente este fascínio dos liberais de direita por tudo que é anticomunista que os leva aos braços do fascismo.

Landau, Schüler et alii afirmam que a "cultura despótica na base da sociedade brasileira" fez parte deste processo. Aqui temos um diagnóstico em comum. O que nossos críticos não conseguem perceber é sua própria leniência e aliança com esta mesma cultura. Quando dizem que "a expressão do ódio deve ser livre, desde que não afete as instituições", quando não dedicam nenhuma palavra ou argumento contra o discurso desqualificativo e a estratégia de violência em Bolsonaro, assim se exemplifica o pacto com a "cultura despótica".

O bolsonarismo é um discurso de incitação à violência e a segregação. Ele não faz mal apenas às instituições, mas também às pessoas e às comunidades. As instituições, seus pesos e freios, tudo isso pode estar funcionando perfeitamente, mas não mudará em nada o fato de que o discurso continua a ser fascista ainda que suas aspirações não estejam realizadas.

Se ele é bem-sucedido em seus propósitos, se ele conseguirá implantar seus objetivos, se isso dominará a realidade, ainda não sabemos. O que podemos saber é que há alguns tentando nos advertir contra isso e outros tentando apagar a aliança contingente com este discurso.

A desonestidade tem perna curta. Ela começa acusando os outros pelo que eles não disseram, continua afirmando fatos que não aconteceram e termina em uma autocontradição performativa: "nós não gostamos de polarização, ela é a causa do problema, não é, seus comunistas desonestos?"

 

[1] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/06/por-que-assistimos-a-uma-volta-do-fascismo-a-brasileira.shtml

[2] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/06/por-que-assistimos-a-uma-volta-do-fascismo-a-brasileira.shtml

[3] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/08/associar-liberalismo-ao-fascismo-nao-e-intelectualmente-honesto.shtml

[4] Myses, L. V. (1927) Liberalismo. São Paulo: LVM, 2010.

[5] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/06/por-que-assistimos-a-uma-volta-do-fascismo-a-brasileira.shtml

[6] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/08/associar-liberalismo-ao-fascismo-nao-e-intelectualmente-honesto.shtml

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Sobre o Autor

Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor do Departamento de Psicologia Clínica e coordenador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Universidade de São Paulo)... além de youtuber.

Sobre o Blog

Aqui vamos discutir o impacto da linguagem digital e das novas tecnologias nos modos de produção de subjetividade, nas formas de sofrimento e na capacidade de inventar sonhos à altura de novos mundos por vir.