Como reconhecer uma fake news científica? Veja este exemplo na psicologia
Christian Dunker
03/07/2020 04h00
Sigmund Freud (Pixabay)
Neste momento em que o Congresso discute medidas para conter a disseminação de fake news e que a pandemia de coronavírus nos faz acompanhar, cada vez mais de perto, o progresso da pesquisa com vacinas e antídotos, torna-se crucial reconhecer e valorizar a boa divulgação científica.
Vários fatores concorreram para a indisposição social com as universidades brasileiras e sua demonização política, junto com as artes e a educação em geral. Entre eles está a crônica dificuldade em esclarecer apropriadamente a importância e a complexidade do processo de produção do conhecimento científico.
O negacionismo científico, porta de entrada para a intolerância religiosa, o dogmatismo cultural e o fascismo político, fermenta a sede de certezas. Nem sempre a ciência tem respostas para nossas incertezas. Isso cria a tentação psíquica para aderirmos a enunciados fáceis e crenças resseguradoras. Isso tende a identificar a ciência, como forma de saber, com a tecnologia, como produção de objetos e processos derivados deste saber.
Saber como funciona o SARS-CoV-2 é diferente de produzir e distribuir vacinas contra a covid-19, que por sua vez é distinto de tratar pacientes em um hospital, ou com a política pública de saúde. Apesar das diferenças, nos referimos a tudo isso como ciência. Apesar da complexidade, sabemos que a divulgação dos benefícios da cloroquina, o anúncio de fórmulas mágicas de cura e proteção são fake news científicos.
Fake news no campo da ciência podem ser definidas como notícias que abordam problemas de ciência com imperícia na apresentação dos fatos, imprudência quanto ao impacto junto ao público ou negligência na tradução da complexidade da matéria tratada.
O contexto da pós-verdade[1] nem sempre é formado por enunciados individualmente falsos e contrariáveis com a experiência por um sistema de checagem. Muitas vezes afirmações verdadeiras ou plausíveis conduzem a conclusões falsas ou mal-intencionadas.
Nosso momento pede urgentemente mais e melhor divulgação científica, mas isso não será obtido tomando a ciência como a única forma de conhecimento válida, útil e pertinente ou misturando tecnologia, metodologia e teoria da ciência com marketing e moral.
O desafio não é pequeno porque a própria definição de ciência sofre severas flutuações, conforme consideremos sua história, os conceitos teóricos das diferentes disciplinas, os objetos específicos, os métodos de investigação, as práticas associadas ou as tecnologias derivadas.
Em vez de expor um conjunto de considerações sobre a ciência em geral, tentando homogenizar critérios relativamente específicos de cada ciência, vou discutir um caso modelo de fake news científica, em uma área sabidamente instável do ponto de vista epistemológico, ou seja, a Psicologia. Trata-se de uma matéria publicada pelo site de divulgação científica "Questão de Ciência", chamado "A Psicanálise e o infindável ciclo pseudocientífico da confirmação", cujo autor, Ronaldo Pilati, professor em Psicologia Social na UNB, possui uma carreira destacada das ciências cognitivas, mas que, neste caso, aventurou-se a tecer críticas contra a psicanálise, matéria na qual não possui nenhum trabalho a respeito. O texto consegue reunir tamanho número de falácias, imprecisões e equívocos que se se presta a exemplificar paradigmaticamente o que deve ser evitado em termos de divulgação científica.
1. Excesso de autoridade
Fake news tendem a denunciar autoridades constituídas e infiltrar um sentimento de que estamos sendo enganados. Afinal esta é a maneira mais simples de começar a enganar o outro, ou seja, praticando a verdade que está por vir. Isso acontece no caso do artigo de Ronaldo Pilati sobre a Psicanálise. Depois de referir-se a sua forte representação social na mídia, no imaginário popular e no senso comum ele declara: "não se confunda, o aspecto mais importante que a Psicologia partilha com a psicanálise é a história".
Observe o uso desigual da letra maiúscula para "Psicologia" e minúscula para "psicanálise". Observe a ideia de que a psicanálise seria algo do passado e histórico. Observe como aquele que quer te enganar começa dizendo que você está sendo enganado. A afirmação é objetivamente falsa. A maior parte dos cursos de Psicologia compreende muitas disciplinas de Psicanálise, quer nos cursos de graduação, quer nos manuais introdutórios mais lidos, quer na pós-graduação. Há vários grupos de pesquisa ligados à psicanálise admitidos pela Associação Nacional de Pós-Graduação em Psicologia (Anpepp).
Mas isso são testemunhos institucionais, na verdade, a tese subjacente é que eles todos possuem uma autoridade indevida. O mais grave neste caso é que o seu autor é presidente da Sociedade Brasileira de Psicologia, portanto, deveria representar todos os psicólogos, inclusive os psicanalistas que frequentam esta sociedade e não apenas os que seguem sua abordagem. Afirmar, pejorativamente, que a psicanálise é uma pseudociência abusa deste poder representativo e deveria levar à sua destituição imediata.
2. Perguntas simplificadoras e suas respostas desencaminhantes
Depois de denunciar as fake news científicas, costumam fazer perguntas simplificadoras do tipo "a psicanálise é uma ciência?". Ignorando a grande variedade de acepções do que significa "psicanálise" (e também "ciência"), fixando-a aos escritos de Freud (como se a pesquisa psicanalítica não tivesse avançado desde então), desfazendo a hipótese de que ela poderia ser, não uma, mas várias ciências combinadas e desinformando o leitor de que a psicanálise é tanto um método de tratamento clínico, quanto um método de pesquisa e uma teoria (a pergunta sobre a cientificidade é diferente em cada caso), o autor não ajuda o leitor a tornar mais complexa a pergunta.
Na verdade, você nunca teria feito esta pergunta se alguém não tivesse desmascarado as coisas para você. Afinal, quando foi que você perguntou se o seu médico é "científico" ou não? Quando foi que você se inquietou se seu fonoaudiólogo, nutricionista ou mesmo o professor de seus filhos é "científico" ou não?
Em geral, confiamos que alguém que se dedicou a uma formação específica, passando por uma universidade ou por qualificações adquiridas para uma prática qualquer, segue sendo uma solução razoável, até que algo nos pareça incorreto ou injustificável.
Perguntas simplificadoras rebaixarão nosso nível de exigência cognitiva, assim como elevam nossa desconfiança. Afinal, como você pode provar que o ser humano realmente pisou na Lua? Quais as reais provas que está havendo um derretimento da calota polar? Como colocou Atila Iamarino, a crença na ciência não aumenta com validação racional de evidências, mas com uma mudança cultural que estabeleça mais e melhores posturas críticas.
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3. Declarações amplas, contundentes … e furadas
Perguntas simplificadoras costumam induzir falsas conclusões ou certezas discutíveis a partir de premissas corretas. No caso da fake news em questão isso remonta ao argumento apresentado por Karl Popper nos anos 1940, de que a psicanálise é uma pseudociência porque seus conceitos não são falseáveis. Karl Popper é um grande teórico da ciência, mas muitos duvidariam que ele é "o maior filósofo do século XX", como o texto declara.
Psicanálise, Psicologia Individual (Adler) e psicologias psicodinâmicas são reunidas em uma coisa só. Popper foi sucedido por inúmeros reparos, críticas e objeções. Mesmo assim, o fato de Freud pertencer "apenas" a história da psicologia, não é suficiente para dizer que Popper, que lhe foi contemporâneo, pertence "apenas" à história da epistemologia.
Oseroff mostrou que a popularização da tese de Popper propagou três mitos pseudocientíficos: o mito da demarcação extra-social da fronteira entre ciência e não ciência (enfrentado por T. Kuhn), o mito de que apenas teorias individuais são falseáveis (a teoria da evolução de Darwin não seria falseável) e o mito de que há apenas um critério de demarcação (há em Popper também o critério da previsibilidade).
A crítica de Popper foi refeita, em melhores bases, por Grünbaum em 1984 e respondida com dados experimentais por Shevrin, mostrando que sim, é possível falsear a hipótese do conflito inconsciente, particularmente em sintomas fóbicos [2]. Portanto, a afirmação de que "a atitude não falseacionista continua sendo replicada pelos psicanalistas da atualidade" é desatualizada, genérica e falsa, apesar de partir de uma premissa verdadeira.
4. Retratos, caricaturas e espantalhos
Fake news movem-se em torno da produção de inimigos, denúncias e conspirações. Por isso é importante prestar a atenção a parcimônia com a qual se caracteriza posições oponentes.
A estratégia da falsa divulgação científica força o retrato com traços indesejáveis e fixa uma imagem representativa: "aquilo que se sabia na época de Freud é muito diferente do que se sabe hoje", nada da psicanálise foi confirmado pelas modernas neurociências (ignorando, por exemplo, o trabalho recente de Sidarta Ribeiro [3]). Com isso nos resta recusar e excluir a psicanálise do debate científico e das práticas psicoterápicas. Isso não contribui para que ela apure seus próprios critérios de cientificidade, esclareça pontos de obscuridade de seus conceitos ou critique seus procedimentos clínicos. A solução se dá por eliminação do oponente.
Pilati ignora soberbamente um século de pesquisas psicanalíticas, invalida autores que renovaram suas concepções. Como se a psicanálise não tivesse buscado apoio na psicologia do desenvolvimento, na antropologia, nas ciências da linguagem, nas matemáticas e mais recentemente nas neurociências. Como se a psicanálise não tivesse se interconectado, para o bem e para o mal, com inúmeras teorias psicológicas, até mesmo cognitivistas e comportamentalistas, como parece ser a adesão do autor do texto.
O retrato sugerido por frases como "o autoalijamento psicanalítico do pensamento científico" desconhece a vasta bibliografia sobre epistemologia da psicanálise. A afirmação de que a "psicanálise é uma pseudociência como a homeopatia, a cromoterapia, as práticas complementares ou integrativas" opera por desqualificação e agrupamento de preconceitos. As revistas, os congressos, as teses, as associações de psicanálise são "apenas" imitações da verdadeira ciência.
Mais uma vez o espantalho criado para retratar a psicanálise se ajusta muito melhor ao próprio texto que a denuncia, como uma falsa divulgação científica.
5. A força do veículo não garante a qualidade do motorista
Fake news científicas podem acontecer em reputados veículos de imprensa. Neste caso um traço típico é a sua republicação, repetindo o conteúdo com pequenas variações de forma. É o caso da matéria de Pilati cuja mensagem se repete há anos, tornando-se parte do conhecido "Funeral Eterno de Freud". Veículos importantes como a Time, nos anos 1990, e agora o site "Questão de Ciência", que publica matérias pertinentes em biologia, medicina e ambientalismo, estão sujeitos a isso.
Tais revistas ou editorias enfrentam o desafio de englobar e cobrir o conjunto mais extenso das ciências, em particular das ciências humanas. Nem sempre a notícia que acolhe todos os lados, enviando o leitor para um material bibliográfico espinhoso e reduzindo o impacto pirotécnico das conclusões será uma pauta atraente.
É possível que muitos elementos da psicanálise e boa parte de suas estratégias de fundamentação sejam provenientes da filosofia e não da ciência. Talvez sua existência dependa de certos paradoxos da ciência, ou de sua peculiaridade metodológica de se interessar por sujeitos singulares, e não apenas por sujeitos-tipos. Mas disso não decorre que ela não se esforce por justificar seus conceitos e procedimentos de forma pública, em linguagem crítica e laica, debatendo com instituições reguladoras, em acordo com os princípios da razão suficiente, no quadro de uma ética emancipatória. Afinal, são destas propriedades, inerentes ao modo como a ciência é feita, que ela extrai sua autoridade sobre nós.
Mas a autoridade que se quer expressar aqui é mais punitiva e securitária: "A população deve ser informada de que, quando alguém opta por uma psicoterapia com estas características, a opção feita é por algo que não tem evidências de efetividade a apresentar", ou seja, se você quer arriscar, tome o risco por si mesmo, porque a ciência não garante.
Anos atrás a maior sociedade científica de psicologia dos EUA refez os dez principais estudos experimentais de sua área e para escândalo geral, mais da metade deles não resistiu ao critério da replicabilidade, ou seja, usando-se os mesmos métodos e variáveis os resultados eram diferentes.
Isso significa que a psicologia experimental não é ciência? Ela está enganando a todos e superestimando sua autoridade? As terapias que decorrem desta perspectiva são uma ofensa à saúde das populações? Acho que não. A população deveria ser informada sim, mas de que existem evidências científicas da eficácia e da eficiência clínica da psicanálise e aqui estão algumas das mais conhecidas:
- Leichsenring, F, Kruse, J, Rabung, S (2012) Efficacy of Psychodynamic Psychotherapy in Specific Mental Disorders: An Update. In: P Luyten, LC Mayes, P Fonagy, M Target, SJ Blatt. Handbook of Contemporary Psychodynamic Approaches to Psychopathology. New York: Guilford Press.
- Rabung, S, Leichsenring, F (2012) Effectiveness of Long-term Psychodynamic Psychotherapy: First Meta-analytic Evidence and its Discussion. In: R Levy, SJ Ablon, H Kächele (Eds.). Psychodynamic Psychotherapy Research. Evidence-Based Practice and Practice-Based Evidence. New York: Humana Press, 27-49.
- Doidge N. Empirical evidence for the efficacy of psychoanalytic psychotherapies and psychoanalysis: an overview. Psychoanal Inq1997;102-150
- Fonagy P, Target M. Predictors of outcome in child psychoanalysis: a retrospective study of 763 cases at the Anna Freud Centre. J Am Psychoanal Assoc1996; 44:27-77.
Sr. Ronaldo, volte para seu condomínio burocrático e pare de espalhar Fake News científicas. Estude um pouco mais de psicanálise e faça uma crítica consistente e atualizada. A crítica bem feita faz todos avançarem na ciência e fora dela também. Evite repetir matérias sem fundamento que visam criar impacto e desinformar a população. A ciência acolhe todos os que querem jogar pelas suas regras e não pode prescindir de todos que dela querem participar. Este é um momento de união de todos que participam do debate das luzes e estão dispostos a enfrentear nossos problemas candentes por meio da razão. Não venha atrapalhar o que já está difícil por si só.
REFERÊNCIAS
[1] Dunker, C.I.L. (2017) Subjetividade em tempos de pós-verdade. In Ética e Pós-Verdade, São Paulo: Dublinense.
[2] Beer, P. (2019) Psicanálise e Ciência: um debate necessário. São Paulo: Blutcher.
[3] Ribeiro, S. (2019) Oráculo da Noite. São Paulo: Companhia das Letras.
Sobre o Autor
Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor do Departamento de Psicologia Clínica e coordenador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Universidade de São Paulo)... além de youtuber.
Sobre o Blog
Aqui vamos discutir o impacto da linguagem digital e das novas tecnologias nos modos de produção de subjetividade, nas formas de sofrimento e na capacidade de inventar sonhos à altura de novos mundos por vir.