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Quem tem medo da loucura do Coringa?

Christian Dunker

11/10/2019 04h00

Joaquin Phoenix em "Coringa". Crédito: divulgação

Epilepsia, Tourette, síndrome pseudobulbar, doença de Huntington, tudo isso combinado? Na interpretação de Joaquin Phoenix, o novo Coringa dos cinemas traz um discurso que devia servir de advertência para entendermos o que acontece quando deixamos de cuidar da saúde mental

"Coringa" (2019), dirigido por Todd Phillips, é um filme vertical sobre a constituição de um tipo muito especial de vilão. Com poucos efeitos especiais, faz uma espécie de arqueologia do ciclo de filmes de super-heróis que dominaram o cinema a partir de 2008, com "Homem de Ferro".

Talvez esta fase esteja chegando ao fim, e com ela o momento no qual a caracterização dos personagens estava definida por poderes e habilidades que podiam ser ganhas ou neutralizadas, que podiam compor-se me alianças e desafios, mas sem grande preocupação com sua gênese psíquica.

Um dos princípios básicos da técnica narrativa reza que o que você ganha em ação você perde em termos de construção do personagem e assim reciprocamente. Para a trama "andar" mais rápido é preciso que aconteçam coisas, como batalhas, enfrentamentos ou descobertas. Por outro lado, a densidade do personagem implica em processos de rememoração, interiorização e recolhimento que habitualmente tornam o desenrolar dos eventos um processo mais lento.

O ciclo dos super-heróis no cinema faz parte de um ciclo mais amplo no interior do qual a literatura teria migrado do antigo romance modernista, que alternava conflitos internos com temáticas sociais, para o romance neurológico, que reduz as motivações e a gramática dos conflitos a determinantes psiquiátricos.

Como alinhavou Paulo Werneck [1], inspirado no crítico literário Marco Roth [2], o neuro-romance teria substituído o romance em chave psicanalítica, como Joyce, Proust ou Guimarães Rosa. Livros como em "Sábado", de Ian McEwan, abordam a doença de Huntington no qual o sujeito é acometido por espasmos e demência progressiva; "Para Sempre Alice", sobre a doença de Alzheimer; o pai com Parkinson em "As Correções", de Jonathan Franzen; delírio de Capgras, no "The Echo Maker", de Richard Powers; o pai com Alzheimer no "Diário da Queda", de Michel Laub.

Além dos relatos clínicos, ou semiclínicos como os de Oliver Sacks, temos na origem desta tendência no clássico "Neuromancer" (1984), de William Gibson pode ser considerado um marco neste tipo de literatura. Em "Coringa" é como se toda a ação já tivesse acontecido anteriormente. Isso aconteceu nas infinitas edições anteriores de Batman versus Coringa que agem como pré-condição para que agora possamos nos verticalizar nos personagens. Ou seja, será que isso significa que o neuro-romance presume ou precise do romance psicanalítico para funcionar como tal? Seria "Coringa" mais um exemplo na série dos neuromancers ou indica uma mutação interna?

Contudo, as coisas podem não ser exatamente assim como parecem, com diria o nosso palhaço-mágico. Arthur Fleck possui uma condição médica específica, não nomeada no filme, mas que provavelmente aponta para a síndrome pseudobulbar. Nela ocorrem dificuldade para falar e para engolir, contrações involuntárias da face, além da expressão involuntária ou descontextualizada de riso e choro.

A síndrome pseudobulbar não tem uma etiologia genética, mas é frequentemente decorrente de outra perturbação cerebral, como um acidente vascular. Sugere-se que ele escolhe a profissão de palhaço como uma espécie de compromisso entre sua condição neurológica e uma atividade na qual isso seria percebido com menos inadequado. Algo assim como alguém que sofre de anosmia (incapacidade de sentir cheiro), escolher como profissão uma indústria química onde estaríamos submetidos à odores insuportáveis. Mas não é bem este o caso, pois o palhaço não é apenas alguém que ri e faz os outros rirem com suas inadequações; ele é uma espécie de marginal que representa a condição despossuída, errante e desvalida de todos nós. Por isso "Coringa" é um personagem trágico e não cômico.

Quando escrevi o livro "O Palhaço e o Psicanalista"[3] junto com o palhaço Claudio Thebas, percebemos que o palhaço, assim como o psicanalista, descendem de uma antiga função social, baseada na posição daquele que é excluído do sistema e por isso mesmo pode observá-lo melhor, como no caso dos "tricksters" enganadores,  concorrer para a cura, no caso do xamã, ou para correções políticas, no caso do bufão.

Uma marca típica deste tipo de personagem é um adoecimento ou uma irregularidade corporal, como os anões, no período das cortes absolutistas ou os albinos africanos. Como na carta do Louco, no tarô, estes personagens são andarilhos, que se vestem como que encontram pelo caminho e a eles são atribuídos poderes de comunicação com outros universos.

Joaquin Phoenix em "Coringa". Crédito: divulgação

Contudo, "Coringa" não é a história de alguém tentando sobreviver à síndrome pseudobulbar, muito menos um estudo das reações da personalidade à uma condição limitante. O Coringa não fica louco porque ele tem um dano no cérebro, mas por uma intrincada correlação entre maus encontros profissionais e amorosos, que parecem atuar como causa desencadeante, em progressão com a descoberta de sua própria origem, chamada por Freud de romance familiar do neurótico.

Seu desejo de aceitação e reconhecimento verticaliza-se em uma reflexão sobre o mundo e seus operadores morais. Joaquin Phoenix mostra-se aqui essencial para a funcionalidade do filme. Ele introduz o senso de profundidade e interiorização, de indeterminação e divisão subjetiva, que aparentemente teria sido erradicado dos filmes de super-neuro-heróis. Isso acontece sem nenhum achatamento edipiano, mas ao mesmo tempo mostrando que o velho Édipo está lá sim, operando por entre os neurônios deformados. Seu estranhamento narcísico e suas experiências de despersonalização testemunham a persistência do narcisismo, como operador de leitura do sofrimento. A teoria trauma e do luto suspenso estão agindo exatamente como esperávamos.

Talvez por isso estejamos em uma Gotham City em forma de New York dos anos 1970, cheia de lixo e desordem. A mesma cena que viu florescer o cinema marginal de John Cassavetes, Robert Altman e Sam Peckinpah, o protesto musical da Motown e o pop underground de Andy Warhol.  Nada mais apropriado, portanto, do que a trilha sonora de Frank Sinatra, em "That´s Life", com seu refrão atualíssimo: "Já fui boneca, pobre, pirata, poeta pião e rei. Já estive em cima, em baixo, além e fora" [4].

Há muita introspecção e tristeza no filme, mas nenhuma depressão. Há alguma violência, mas com uma curiosa crítica de sua própria espetacularização.

O que torna o Coringa um vilão especial, uma exceção inter-pares é que não se descobrirá um causa perfeita para sua revolta. Todas as narrativas que compõe a espessura do filme convergem para um tipo de revolta ou vingança. Uma resposta que ele dá não apenas aos outros que determinaram sua miséria, mas ao Outro que se apresenta como irracionalidade constitutiva. Não é uma retribuição ao que sai de ordem, criando um senso de justiça ou equilibração. Não é um plano de poder. Mas também não é um vilão mecânico como os zumbis. Ele estaria mais próximo, segunda a classificação de Briggs, dos vilões que encarnam catástrofes da natureza, ou seja, uma força destrutiva maior que permite que o mundo comece de novo.

Agora podemos entender porque a catástrofe natural da síndrome pseudobulbar precisa ser mimetizada por uma transformação radical do caráter de Arthur Fleck, transformando o pacato e tímido filho de uma mãe desolada em um assassino gratuito, no qual justamente não se sabe que ele está agindo por efeito da coerção do riso ou ironizando os seus poderes de determinar sua vida.

O filme é sobre uma única grande transformação na vida de uma pessoa, por isso ele tem uma única e decisiva virada narrativa. Neste momento aparecem sinais clínicos de uma psicose: alucinações, ilusões e perturbações do sentimento de si. Mas a continuidade do processo não é muito compatível com isso, abrindo a discussão sobre as próprias tecnologias de nomeação e tratamento do sofrimento psíquico. Aliás para os que gostam de desafios clínicos, o filme dá a dica de como afinal ele teria contraído a tal síndrome psedobulbar.

O filme mostra de modo pungente a degradação dos dispositivos de tratamento: subitamente são retirados sete medicações, conselheiros que mais parecem máquinas protocolares, que textualmente são incapazes de escutar Arthur Fleck. Assim como a educação tem um certo efeito preventivo contra a criminalidade, experiências de escuta tem um efeito protetivo em relação aos transtornos mentais.

Joaquin Phoenix como Arthur Fleck, no filme "Coringa". Crédito: divulgação

Com raríssimas e contáveis exceções, os transtornos mentais não constituem uma ameaça ou uma condição perigosa em si. Mas quando deixamos de tratar, desfazemos ou ignoramos seu papel na vida das pessoas aquilo que não era tão grave em si torna-se uma força devastadora. O discurso do Coringa diante de sua monitoradora, que será desligada por corte de recursos, devia servir de advertência para entendermos o que acontece quando deixamos de cuidar da saúde mental, ainda que até aquele ponto o tratamento tenha sido precário.

Talvez o romance neurológico nos leve de volta não para uma situação pós-psicanalítica, mas ao estado pré-psicanalítico de entendimento do sofrimento mental. Durante o século 19 e início do século 20 desenvolveu-se o que se poderia chamar de teoria das doenças espelho, entre neurologia e psicologia. Isso implicava uma espécie de efeito metafórico das síndromes neurológicas que estavam sendo descobertas naquela época. Por exemplo, se durante um surto psicótico ocorre agitação psicomotora e na epilepsia há uma agitação semelhante será que a psicose não é um tipo de epilepsia "frustrada"? (Assim começou o eletrochoque).

Se um ataque histérico envolve espasmos, não teria a histeria alguma relação com as coreias, como a de Pick ou de Huntington, onde também encontramos espasmos? Se a síndrome de Tourette ocorre coprolalia e impulsividade verbal, e se este é um sintoma ocasional da neurose obsessiva, não seria ela um tipo "brando" daquela síndrome?

Foi assim que causas materiais e objetivas foram se combinando com suas versões duplas, de modo semelhante ao modo como os vilões se constroem em analogia e inversão com seus heróis. A trajetória do Coringa é indissociável da de Batman, como o filme mostra de modo tocante, mas também neste ponto há um equívoco fundamental. Eles não são espelhos perfeitos, mas espelhos com um pequeno hiato separador entre eles. É este hiato que constitui a loucura do Coringa, mais além de sua síndrome pseudobulbar ou sua psicose.

[1] https://www.institutocpfl.org.br/2016/05/03/neuroliteratura-com-paulo-werneck-versao-completa/

[2] https://nplusonemag.com/issue-8/essays/the-rise-of-the-neuronovel/

[3] Dunker, C.I.L. & Thebas, C. (2019) O Palhaço e o Psicanalista: como escutar pessoas e transformar vidas. São Paulo: Planeta.

[4] "I've been a puppet, a pauper, a pirate, a poet, a pawn and a king. I've been up and down and over and out and I know one thing"

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Sobre o Autor

Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor do Departamento de Psicologia Clínica e coordenador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Universidade de São Paulo)... além de youtuber.

Sobre o Blog

Aqui vamos discutir o impacto da linguagem digital e das novas tecnologias nos modos de produção de subjetividade, nas formas de sofrimento e na capacidade de inventar sonhos à altura de novos mundos por vir.