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Ler mais não nos afasta do risco do analfabetismo digital generalizado

Christian Dunker

04/10/2019 04h00

Crédito: Reprodução

Frequentemente escutamos que o excesso do uso de telas digitais cria um estado generalizado de desinteresse, dispersão e déficit atencional. Parece ser cada vez mais difícil estar concentrado, presente e intensamente dedicado à uma atividade ou interação.

Os dispositivos digitais parecem ter um efeito colateral de ausentificação de si, em função de seu convite permanente ao desvio e a multiplicidade de escolhas. Isso já estaria na sua estrutura que é uma espécie de árvore de caminhos infinitos e facilitados. Isso pode ocorrer tanto quando olhamos uma página básica de internet com sua hierarquia de demandas e opções, quanto quando usamos uma rede social organizada ao modo de uma rolagem horizontal ou vertical.

Talvez o problema não esteja apenas neste novo sistema de escrita digital. Talvez ele demande de nós uma alteração substantiva do conceito de leitura. Leitura na qual ainda somos analfabetos.

Na antiguidade clássica formaram-se três formatos básicos que estruturam nossa prática de leitura: o livro, a tela e a arquitetura. No ocidente a forma-livro privilegiou a movimentação do olhar da esquerda para a direita e de cima para baixo, alternada por movimentos das mãos em ritmo página a página. A forma-tela enfatizou a captura do olhar em dupla alternativa: figura ou fundo e detalhe ou padrão.

Cada gênero desenvolveu suas regras de recepção e suas armadilhas próprias para o olhar: o perspectivismo renascentista, a contorção barroca, a paisagem romântica.  A forma-arquitetural introduz nestas duas experiências a leitura do próprio corpo em sua movimentação no espaço. A arquitetura é o modelo d que se poderia chamar de discurso ou envoltório no qual livros, imagens e outros formatos de imagem se tornam possíveis.

Com raras exceções estas três formas de leitura mantém o olhar do mesmo lado da visão. Ou seja, para um leitor do português o sentido de um livro depende da associação entre a progressão narrativa, distribuída do começo para o fim do texto, e da hierarquia entre o que está à esquerda e acima sobre o que está, a cada vez, à direita e abaixo na página. Seria um pouco contra-intuitivo olhar para o conjunto da página e decidir, por exemplo, por qual palavra devo começar minha leitura.

Da mesma maneira seria um pouco forçado imaginar alguém que diante de uma tela de Tarsila do Amaral ou Anita Malfatti, faça sua visão percorrer o caminho de uma impressora, linha a linha, percebendo horizontalmente os traços da imagem e gradualmente compondo objetos, temas e assuntos que constituem a tela. Ler imagens não é o mesmo que ler textos, ainda que textos sejam compostos por imagens de letras e seus tipos característicos de impressão.

O sucesso inexplicável de um tipo de letra chamada Helvetica, predominantemente usado em anúncios e textos publicitários, talvez possa ser remetido à congruência que este tipo de letra parece evocar entre a leitura de textos e de imagens em um contexto arquitetural.

Visão e olhar estão associados, mas entre eles há um espaço vazio. Um espaço de tempo subjetivo e objetivo que existe também entre ler e agir. Quem não consegue ler este espaço lê mal, e lê pior ainda quando se trata da arquitetura digital. Mais ou menos como na linguagem do cinema, onde uma cena de diálogo pode ser filmada mostrando a sucessão de faces dos atores, um de cada vez, e não os dois enquadrados na mesma cena. Nossa experiência de leitura "enxerga" o interlocutor, mesmo que ele não esteja lá.

Em outras palavras, o nosso olhar inclui coisas que efetivamente nós não estamos vendo. É o que se poderia chamar de fenômeno de completamento de sentido, ou o que o filósofo Marleau-Ponty chamou de "fé perceptiva". Não preciso ver o outro lado do vaso para saber que ele está lá. Minha mão antecipa o volume e a presença de aspectos perceptivo que são opacos ao uso efetivo de meus órgãos dos sentidos. Por isso "escutamos" coisas que efetivamente não foram ditas e "olhamos" coisas que não estamos realmente vendo. Problemas terríveis de leitura acontecem quando eu passo a ler como se estivesse realmente vendo o outro lado do vaso, ou seja, a intenção, o que o outro quis dizer, o que eu já sei sobre o sentido do que está sendo dito. Esta tendência à antecipação e ao fechamento de sentido Lacan chamou de imaginário.

No espaço digital a leitura combina estes três tipos de leitura. Há textos que replicam o formato de um jornal ou de um ebook, mas há também leitura de imagens, quando pensamos nos pop-ups, nas zonas de clicagem e nas animações. O fenômeno não é novo: um jornal combina leitura de imagens com a de textos, geralmente subordinando imagens aos textos, de acordo com a ideia de "ilustração".

A leitura arquitetural inclui as situações de leitura: em casa no café da manhã, no carro ou na sala de espera do psicanalista. No caso da linguagem digital a escala é limitada aos formatos básicos da tela, do desktop, do smartphone ou das televisões. Mas a leitura é coordenada por intervenções potenciais e estruturada ao modo de várias conversações ao mesmo tempo. Não é como rabiscar um livro: é como escrever o livro com seu autor.

Paulo Freire dizia que a criança já sabe ler muito antes de se deparar com o desafio de ler organizadamente um livro. Aprender a ler e escrever é, portanto, um trabalho de ampliação  e desdobramento de um modo de leitura para outro e não a introdução de algo radicalmente novo em alguém que antes era uma tábula rasa. A força desta teoria reside na simplicidade com a qual ela mostra porque a aprendizagem ocorre muito melhor quando ela opera sobre elementos significativos, do universo de discurso do sujeito, do que quando ela tenta incutir um código estranho e completamente artificial no sujeito.

Recentemente o apresentador de televisão Danilo Gentili foi indagado por Marcelo Tas sobre quem era Paulo Freire [1]. Este responde que é um ator que usa frases sem sentido, como um estelionatário. Mas ao dar um exemplo de tais frases, depois de muito esforço ele diz: "Eva viu a uva". Todo o ensino de Paulo Freire começa pela pergunta sobre a impertinência do uso de cartilhas, do tipo "Caminho Feliz" pois estas usam expressões que podem ser muito descontextualizadas, tais como "vovô viu a uva" (e não "Eva viu a uva").  Ou seja, alguém pode dizer que não tem sentido aquilo que ele mesmo não consegue ler, mas entende assim mesmo.

O exemplo se presta a demonstrar como funcionam os efeitos prolongados do analfabetismo digital. Duas expressões que se encontram em associação constante só podem indicar um efeito de contágio e identidade. Ora, "vovô viu a uva" está associado a Paulo Freire por seu valor de negação crítica e não de defesa.  Com isso pode acontecer, para além da desinformação e óbvia ignorância?

Podemos ler um texto do modo como lemos imagens. Destacamos o título, pegamos algumas palavras, geralmente em sentido diagonal na sua disposição na página. Focamos no autor. Depois focamos em quem o está apoiado ou desapoiando. Confirmamos e antecipamos isso pela diagramação estética do ambiente em que estamos. Isso determina o contexto de significatividade do que será lido. A tendência, neste tipo de leitura de textos ao modo de imagens é reencontrar o que já sabemos e a confirmar nossas impressões e preconceitos sobre a matéria. Confunde-se assim o que se lê, com o que se entende, naquilo que se diz. O que o texto efetivamente diz, fica esquecido por trás do imperativo de produção acelerada de sentido.

Isso leva nossa atenção a sair do que efetivamente está escrito e nos orientar, durante o processo de leitura, na reação que queremos produzir em resposta ao que lemos.  O mais paradoxal é que alguém que lê desta maneira está comprovando a teoria de Paulo Freire mais além do que ele mesmo queria. Nunca ocorreu ao autor de "Pedagogia do Oprimido" que a mera leitura do mundo, sem confrontação com a realidade, sem mediação com outras leituras, pudesse ser expandida para sancionar uma espécie de teoria generalizada da auto-verdade.

Sim, somos ainda, em grande medida, analfabetos digitais. A ideia de que novas tecnologias digitais poderiam simplesmente sanear os antigos problemas de ensino e superar magicamente nos antigos modelos de educação esbarra neste pequeno problema que é como alfabetizar digitalmente populações inteiras, que ademais acham (e acham corretamente, como diria Paulo Freire) que elas já sabem ler.

Precisamos de toneladas de artistas plásticos, arquitetos e desenhistas para nos ensinar como ler imagens. Mais outro tanto de professores leitores para mostrar como além a leitura cis, aquela que fica do mesmo lado, agora temos que saber ler de forma trans, ou seja, ler passando para o outro lado. Ler passando para o outro lado pode significar ler de baixo para cima, da direita para a esquerda, como no caso do hebraico, árabe ou mandarim. Ou seja, temos que relativizar nossa própria posição de leitura para entender outros lados deste sistema de escrita que é o sistema digital.

Para fazer isso é preciso ler imagens, ler letras mas também e sobretudo ler a arquitetura do discurso onde imagens e letras se combinam. Caso contrário vamos continuar a ler cada vez mais, em termos de dedicação temporal e atencional distribuída, e ao mesmo tempo lermos cada vez menos, em termos de formação de juízos de relevância e de significatividade transformativa.

Na educação, como na economia, não existe almoço grátis. Se você acha que está lendo muito mais e melhor, simplesmente porque pula de um link para outro, derivando sua atenção para várias coisas ao mesmo tempo, removendo sua atenção de tudo o que é complicado, gera conflito cognitivo, parece falso ou é demorado, o resultado é que você está perseverando em seu analfabetismo digital.

Seu senso de relevância será lentamente deformado pelas facilitações associativas geradas pelos algoritmos e pelo viés de confirmação que está intoxicando seu modo de ler. Sua ignorância se tornará cada vez mais soberba e corajosa, e você achará que sabe ler textos e imagens, mas na verdade são elas que estão lendo você. Você vai achar que domina a narrativa quando na verdade é o discurso que vai jantar você, vovô, a Eva e a uva. Não tem nem almoço, nem janta grátis.

[1] (Min 11:30) https://www.youtube.com/watch?v=f1idmxlscoE

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Sobre o Autor

Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor do Departamento de Psicologia Clínica e coordenador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Universidade de São Paulo)... além de youtuber.

Sobre o Blog

Aqui vamos discutir o impacto da linguagem digital e das novas tecnologias nos modos de produção de subjetividade, nas formas de sofrimento e na capacidade de inventar sonhos à altura de novos mundos por vir.