Do negacionista ao tecnólogo prudente: veja quem você é no pós-quarentena
Ao que tudo indica a abertura chegou, de forma lenta, gradual e irrestrita. Ou seja, a pandemia começa a dar mostras de arrefecimento no Brasil, ainda que em alguns centros esteja no processo de agudização, em um movimento de expansão dos grandes centros para a capilaridade do interior. Forma-se agora uma espécie de litoral entre a regra clara e universal –"não saia de casa"– e suas exceções, limites e casos singulares.
Entendo que este processo envolve o exercício ético do emprego de tecnologias e a produção de um novo espaço de negociação e de confiança entre o privado e o público. Se antes o risco estava entre zero e um, o que nos permitia distinguir entre os que seguiam a quarentena e os que a violavam, com a exceção dos que por dever de ofício precisavam se expor ao risco e demandavam assim proteções e cautelas especiais, como as EPIs, agora cada qual deve calcular o risco subjetiva e objetivamente, com os recursos e necessidades que se impõem.
Por exemplo, deve uma idosa de 87 anos receber a visita de seu neto, que ela jamais viu desde o nascimento? Mesmo que os pais estejam em quarentena fechada há o risco do elevador, do automóvel e das escadas. Mas quem decidirá a tomada de risco? Os pais, a própria avó, um infectologista?
Outro caso. Uma jovem está prestes a mudar-se para um apartamento recém-adquirido, mas antes disso decide fazer uma pequena obra. O condomínio decide interromper obras durante a quarentena. Mas quem dirá quantos pedreiros, barulhos e materiais de construção constituem um risco para os habitantes do prédio, e quantos olharão para o risco enfrentado pela jovem proprietária que não pode praticar a quarentena como gostaria?
São exemplos de como a tomada de risco convoca uma análise para a qual estamos desprevenidos, porque ela não é uma análise de risco individual, mas, como diria Lacan, de risco transindividual. Ou seja, quando eu avalio que represento um risco grande para você a quem amo, ainda que você mesmo não pense assim, deve prevalecer o meu juízo ou o seu?
A balança aqui parece reunir um intrincado jogo de relações, que passam, por exemplo, pelo acúmulo de comorbidades, como diabetes e fragilidade cardíaca, pela soma de vulnerabilidades, como faixa etária e condição nutricional, e pelos ganhos potenciais derivados da tomada de risco, por exemplo o aumento de renda que, eventualmente, pode ajudar a melhorar as condições para suportar a quarentena, sua ou dos seus.
Há sites que mostram áreas com maior incidência de casos de covid-19, alguns capazes de indicar a quantidade de contaminados por rua. Por outro lado, começamos a encontrar cada vez mais pessoas que andam com o teste positivo no bolso, para atestar sua imunidade. Deveriam eles usar máscaras, para incentivar tal prática, que coletivamente nos protege a todos? Ou deveriam exibir sua imunidade publicamente? Isso nos leva a outra consideração: e aqueles que apenas se dizem imunes?
O ponto chave aqui é que teremos que reconstruir nossa confiança nas palavras, assim como, com todo cuidado nos autorizar a saber sobre a quarentena alheia. Entre o aberto e o fechado existe o entreaberto. Quando o risco se distribui entre contrair uma forma grave ou assintomática do vírus, nos aproximamos da lógica que força a alternativa entre vida ou morte, ainda que alguns pensem em reduzi-la à oposição entre a bolsa ou a vida.
Podemos então discernir quatro percursos daqueles que estão agora reformulando sua relação com a quarentena:
Negacionistas
Os negacionistas, que persistem e prolongam uma atitude de negação do risco ou de seu aspecto coletivo e indeterminado. São aqueles que se acreditam imunes, escolhidos ou especiais demais para serem atingidos por esta espécie de punição moral, com qual a doença foi vestida. São aqueles que precisam negar ostensivamente a quarentena e que agora se opõe ao uso de máscaras e procedimentos elementares de precaução.
Binários
Os binários, que diante da lei colocam-se apenas uma alternativa: obedecer ou transgredir. Neste caso é preciso destacar como a apresentação dos planos de abertura, com toda sua complexidade, com idas e vindas, e talvez com certa precocidade, fez com que o imenso sacrifício representado pela quarentena, com seu impacto diverso em nossas práticas de redução de angústia e estabilização sintomática, de medo e de perda de liberdade, tenha sido meramente revertido para o polo da liberação. Como se furar a quarentena seguisse a regra de: "furado por um, furado por mil".
Aqui a dificuldade da matéria não é pouca. Como esclarecer a população de que cada qual deveria analisar criteriosamente suas próprias condições de vulnerabilidade, calcular riscos a partir daí, criando novas formas de isolamento social?
Vasos comunicantes
Os vasos comunicantes, que formaram gradualmente uma rede interligada de quarentenados e de pessoas ou grupos "seguros". São pais e avós que se frequentam sob certas condições, empregados que voltam ao trabalho depois de um tempo vivendo em condições mais seguras, ou pessoas que fazem o teste para poder integrar a rede de frequentação.
"Vasos Comunicantes" é o nome do romance surrealista publicado em 1932 por André Breton, onde se misturam poesia e prosa, dados reais e testemunhos imaginários em torno do que ele chamou de "contingência objetiva", ou seja, toda a franja de fenômenos que ocorre na zona de passagem entre o sono e a vigília, entre a fantasia e a realidade que nos torna seres de aposta e risco.
Cada estabelecimento comercial, cada escola, cada casa deverá estabelecer suas próprias regras de descontaminação ou cuidado e negociar que tipo de vaso comunicante pretendem criar. Isso significa deixar claro, transparente e compartilhados os riscos assumidos.
Prudentes
Os prudentes, que estão dispostos a usar todos os recursos que a tecnologia oferece, para avaliar riscos, criar práticas de proteção e reduzir fatores de contágio, mas ao mesmo tempo voltar para o mundo. A prudência ou bem-aventurança era chamada pelos gregos de sophrosine a virtude fundamental, a mãe de todas as outras virtudes. Para Aristóteles, a sophrosine é uma espécie de saúde moral, representada pelo caminho mediano entre a dor e o prazer, figurada pela função corporal do tato. Para Plotino ela é a "purificação (kahtarsis) preparatória para o retorno"[1].
Vão usar termômetros e álcool em gel, praticar distâncias e máscaras e confirmar que na nossa cultura, amar é proteger, mas ao mesmo tempo vão espaçar horários de trabalho, negociar a revelação de contaminações próximas e criar outras modalidades de circulação, pois amar é também apresentar ao outro o risco contingente de estar na vida.
Como diz Ailton Krenak: primeiro o cuidado, depois a coragem.
REFERÊNCIA
[1] Peters, F. E. (1974) Termos Filosóficos Gregos. Lisboa: Calouste Goulbekian.
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