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"Deixar de seguir": como post no Instagram expôs a cultura do cancelamento

Christian Dunker

22/05/2020 04h00

No último sábado postei em meu canal do Youtube um vídeo [veja abaixo] falando sobre a obra de Frantz Fanon, psiquiatra negro, nascido na colônia francesa da Martinica, que é um autor central para questões raciais e para o pensamento decolonial. Como faço com a maioria das coisas que escrevo, replico o material no Instagram, mas, neste caso, tenho que resolver um problema interessante: que imagem escolher para ilustrar o material?

Posso baixar uma imagem da internet relativa a uma pesquisa básica sobre o tema da postagem, mas considero este procedimento pouco criativo e um tanto impessoal. Portanto, gradualmente coloquei-me o desafio de, a cada vez, achar uma imagem compatível em meu banco de fotos. Às vezes a coisa funciona bem, outras de modo aproximativo e em outros tantos casos recebo críticas sobre a "imagem aleatória" que não tem nada que ver com o texto.

O exercício é bem legal porque contraria a regra do Instagram que é pensar da imagem para a palavra e não o contrário. Por outro lado, mostra como nós podemos ser extremamente parciais em nosso fluxo de associação de ideias. Aquilo que é óbvio e evidente para você pode representar o enigma da esfinge para quem está do seu lado.

No caso da postagem sobre o autor de "Pele Negra, Máscaras Brancas" [1], me deparei com uma imagem muito preciosa para mim. Estava em uma noite chuvosa em uma praça de Tel Aviv segurando um cartaz escrito "Marielle Presente".

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O evento, organizado pelo professor Michel Gherman, reuniu diversos movimentos pelos direitos humanos que atuam fora do país.

Tenho em regra evitar imagens nas quais apareço muito diretamente porque isso desvia potencialmente o interesse do texto para minha pessoa. Mas neste caso o risco parecia valer a pena, tanto porque Marielle Franco é uma das principais representantes da luta pelos direitos humanos, em sua expressão antirracialista, quanto pelo fato de que a foto mostra ao fundo o seu amigo pessoal e colaborador direto, o pastor evangélico, escritor e ator negro Henrique Vieira. Reputo que Henrique é uma de nossas melhores lideranças quando o assunto é a luta contra o preconceito racial. Portanto, nada melhor que sua presença para homenagear o pensamento de Fanon, este crítico da cultura do branqueamento.

Recebo então a seguinte mensagem de uma seguidora do Instagram:

"Prezado Chris, comprei o seu interessante e profundo livro 'O Palhaço e o Psicanalista' e te acho muito inteligente. Mas o seu post 'Marielle Presente' diz claramente que seu olhar para o mundo é muito reduzido, parcial, segmentado, pois um olhar mais abrangente e justo divulgaria um post com fotos ou nomes de crianças, bebês, jovens, mulheres, homens, idosos, famílias inteiras que diariamente em nosso país são vítimas de homicídios piores que o de Marielle. De maneira cruel, cidadãos de bem, seres humanos esquecidos, por conta de um olhar partidário reduzido. Esses, querido Chris, continuam PRESENTES, mas em nossas famílias, anonimamente, e em nossos corações quando a imprensa partidária cita rapidamente sem dar muito valor. Marielle não foi melhor do que esses que perderam suas vidas cruelmente …. Convido você a pelo menos pensar nisso …. Deixando de te seguir …."

Jussara é psicóloga em Volta Redonda e seu post é longo e bem escrito. Não há sinais aparentes de ódio, mas afinidade e respeito, com relativo conhecimento de causa sobre meus livros. Por isso mesmo penso que estamos diante de um bom exemplar do que vem sendo chamado de cultura do cancelamento.

Se alguém xinga, usa pseudônimos para ofender os outros ou simplesmente trata outros apenas como um espécime dentro de uma classe, podemos dizer que ele está agindo seus preconceitos de forma errática. Ou seja, nestes casos o cancelamento parece uma prática razoável como forma de reduzir a radioatividade dos comentários, que no fundo não são para você, mas para o que você representa na cabeça do outro.

Qualquer um que tenha alguma experiência com o discurso público conhece este problema. Quando entramos neste debate concedemos em sermos tratados, um pouco, como personagens. Nos tornamos depositários de representações e projeções, que criam uma certa autonomia para nossa imagem. O contraste com nossa vida doméstica, laboral ou familiar pode ser agudo. Com diz minha esposa: "se seus leitores soubessem como você se comporta quando tem jogo do Palmeiras você perderia metade de sua audiência".

Mas Jussara não parece ser uma destas bolsominions que reagem alergicamente a tudo que tenha cheiro, densidade ou sabor de esquerda. Se fosse assim, acho que ela já teria me cancelado bem antes disso.

Percebo que ela, como psicóloga, tem uma genuína afinidade com pessoas em situação de sofrimento e sua crítica refere-se ao fato de que estou sendo parcial, consequentemente, um tanto injusto ao escolher Marielle e deixar outros tantos de lado. Eu estaria fazendo uma discriminação tendenciosa ao selecionar esta imagem para dizer: "esta pessoa, e o sofrimento a ela associada, é muito mais importante, relevante ou digna de ser mostrada do que outras tantas". Como se o fato de que Marielle era uma militante de esquerda pesasse muito mais do que o fato de que ela foi morta cruelmente.

Freud dizia que o momento em que devemos propor uma interpretação situa-se um pouco antes do paciente chegar a conclusão por si mesmo, mas que por outros motivos achamos que ele vai passar perto sem chegar, como de outras vezes. Esse é um momento perigoso, porque ele pode anunciar, do lado do paciente, um ato intempestivo ou uma repetição, porque a angústia da contrariedade sempre cerca a admissão da verdade recalcada.

Algo análogo coloca-se em relação ao comentário de Jussara, e acho que pode ser coligido com um bom exemplo para este tipo de cancelamento, baseado em pequenas diferenças que não podem ser admitidas porque gerariam grandes transformações.  Marielle foi escolhida para o post, assim como ela vem sendo escolhida como um símbolo da luta contra opressão, que paira contra negros, pobres, periféricos e LGBTQ+ no Brasil, porque sua vida desperdiçada cruelmente tira do anonimato todas as outras vidas que como ela temos dificuldade em reconhecer.

O post de Jussara retoma a discussão que estamos fazendo aqui nesta coluna em torno da contabilidade ou da comensurabilidade das formas de sofrimento e como fazemos para reconhecê-los de tal forma a transformar a nossa realidade. Ou seja, não se trata de um concurso de subcelebridades ou de qual sofrimento deve se tornar mais famoso ou qual deles é mais digno, porque todos e cada um deles são.

O problema é também formal e envolve tanto a política quanto a ética e a estética, a saber, como fazer para que a morte não seja transformada em um acontecimento de massa, onde os corpos e velórios acontecem de modo industrializado, silencioso e estatístico.

"Cancelamento" é uma palavra usada para suspensão de um serviço. Cancelo a assinatura de um jornal, de uma matrícula na academia, da participação em um show. Quando desenvolvemos um gosto todo especial por dizer "não preciso de você", "te dispenso impessoalmente", como a um serviço de entregas, que eu presumo precisar de mim como se precisa de um cliente, transportamos para nossa conversa política e ética regras do universo do consumo e da produção.

A palavra-chave para minha sentença de cancelamento foi, no fundo, "partidário". Dela deriva o olhar estreito, a parcialidade e a tendenciosidade pela qual sou criticado em associação com representante de "a imprensa". Ora, a perspectiva partidária traz imediatamente uma espécie de hierarquia, de comparação, de valorização premeditada e enganadora. Uma visão de mundo que enquadra tudo em seu caminho segundo seu ponto de vista. Como se as pessoas se dividissem entre aqueles que têm uma visão política do mundo e as outras que veem o mundo como ele é (e se isso não fosse, por si mesmo, uma visão política).

Isso torna compreensível a declaração de que "Marielle não foi melhor do que esses que perderam suas vidas cruelmente", como se a escolha por Marielle fosse uma ofensa aos outros que não estariam representados por ela e por sua perda. Como se "a esquerda" não estivesse interessada em "todos nós", mas em "apenas alguns de nós", como costumamos opor particularistas e universalistas.

Aceitei o convite feito por Jussara para pensar em meu gesto, que curiosamente foi reduzido à escolha de uma imagem, sem nenhuma consideração por sua relação com o vídeo de introdução ao pensamento de Frantz Fanon que ela evocava. Eu poderia ter escolhido, por exemplo, uma cena do filme "Carandiru" (Hector Babenco, 2003), mostrando corpos empilhados, predominantemente negros. Eu poderia ter escolhido uma tela de Tarsila do Amaral para representar nossa população predominantemente negra. Eu poderia ter proposto imagens de enfermeiras negras ou de moradores de bairros negros que estão sendo mais afetados pela covid-19 do que os outros. Mas pedir que as coisas sejam percebidas em contexto já é declarar o privilégio de nosso ponto de vista sobre o dos outros.

Jussara, porque Marielle não pode ser uma representante simbólica de todas as mortes injustas, cruéis e despropositadas que estamos assistindo na história de nosso país? Por que Marielle é ofensiva aos outros que se foram, tão mais ou menos injustamente? Você gostaria de propor outra pessoa? Outra imagem? Estou disposto a aceitar prontamente suas sugestões, porque a questão da negritude e da violência não é uma questão apenas para os negros e para os mais vulneráveis, mas uma questão para todos nós. Se Marielle não é boa o suficiente para representar todos nós, quem seria?

A cultura do cancelamento é um sintoma de nossa tendência a reduzir a diversidade a uma oposição entre particulares, porque no nível dos particulares todos têm razão, e a razão não serve para mudar nada nem em mim nem no mundo.

Tenho mais de 300 mil seguidores em minhas redes sociais. Não sou um "influencer" do primeiro time, mas jogo na segunda divisão desta conversa. Ainda assim poderia dizer: "o que significa uma pessoa, no caso você, Jussara, entre tantos outros?" Poderia dizer: "vá em paz e encontre a tranquilidade no seu próprio condomínio".

Mas não vou fazer isso, porque você me importa. Digo que você me importa porque não está possuída pela desrazão terraplanista, nem pela redenção mítica pela cloroquina, nem pelo "…  e daí?" do churrasquinho da gente diferenciada. Você não está dizendo que "tanto faz, vamos morrer mesmo, como gado, portanto a vida não é tão importante assim".

Você e eu estamos inquietos e incomodados pela morte de tantas pessoas, pela crueldade que grassa em nosso país, pela invisibilidade das vidas anônimas perdidas e pela falta de reconhecimento, público e privado, atual e passado, com relação ao sofrimento das pessoas.

Estamos no mesmo partido, Jussara: o "Coração Partido", fundado pelo poeta Cazuza.

Por isso te digo, com sinceridade: não se vá, cada um de nós faz diferença.

REFERÊNCIA

[1] Fanon, F. (2003) Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador: UFBA.

Sobre o Autor

Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor do Departamento de Psicologia Clínica e coordenador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Universidade de São Paulo)... além de youtuber.

Sobre o Blog

Aqui vamos discutir o impacto da linguagem digital e das novas tecnologias nos modos de produção de subjetividade, nas formas de sofrimento e na capacidade de inventar sonhos à altura de novos mundos por vir.