Chegada do coronavírus ao Brasil mostra como é fácil sermos manipulados
O Brasil ficou de novo entre os últimos lugares na escala de apreciação da própria realidade. Estávamos em sexto no campeonato mundial da ignorância sobre nós mesmos, e agora caíamos para penúltimo, entre os 38, ficando à frente apenas da África do Sul. Achamos que 48% das nossas jovens ficam grávidas entre 14 e 19 anos, quando o resultado real é de 6,7%; pior percepção mundial nesta matéria. É possível que disso decorra nossa facilidade para sermos manipulados.
O erro de apreciação ou a incapacidade de estimar aquilo que não se sabe exatamente é um grande termômetro psíquico de nossa vulnerabilidade. Ou seja, não estamos falando de baixa informação ou qualidade deficitária da educação, mas de como lidamos com o que não sabemos, ou com aquilo sobre o qual temos um saber intuitivo, prático ou difuso.
No campo das estimativas, os estudos inaugurados pelo matemático escocês Bayes confluem inesperadamente com algumas intuições do psicanalista Sigmund Freud, ou seja, nossas expectativas, sonhos e desejos são sobredeterminados não apenas pela nossa forma de ver o futuro, mas também de lidar com o passado e de viver o presente.
Em situação "normal" conseguimos fazer previsões quantitativas muito fidedignas intuindo o emprego das três grandes distribuições dos fenômenos, exponencial, normal ou Erlang. Ainda que não tenhamos dotes matemáticos formais, empregamos regras adequadas em nossas previsões cotidianas[1]. Escolhemos quase sempre corretamente quando aplicar a regra multiplicativa ("quanto mais uma coisa demora, mais esperamos que ela tenda a demorar"), média ("as coisas tem um tempo médio para acontecer, independente de nossas expectativas") ou aditiva ("não há alteração de previsão e os antecedentes conhecidos não importam").
Por exemplo, o total de espera previsto para atendimento em uma destas centrais de atendimento telefônico, consiste, segundo a opinião geral, em uma vez e um terço do que se tinha esperado até então. Ainda que saibamos que aqueles "cinco minutinhos" serão insuficientes para resolver o problema, insistimos em acreditar no contrário. E achamos que as coisas tenderão a existir pelo tempo que elas existiram até aqui.
No entanto, essa tendência geral se altera dramaticamente quando estamos diante de duas situações:
- Quando não temos experiências anteriores sobre o assunto, ou quando nossas experiências anteriores nos levam a desconfiar dos outros, casos nos quais nossa representação do mundo assume proporções muito incorretas.
- Quando adquirimos uma nova linguagem e aquilo que falamos e ouvimos distanciam-se brutalmente do que experienciamos e vivemos, o que nos leva a sobrevalorizar eventos raros e intensificar o sentido das exceções.
Portanto, se você quer manipular as pessoas, para que elas contrariem seus próprios juízos e percepções, comece por criar uma atmosfera paranoica, cheia de conspirações e intencionalidades perversas nas quais desconfiar dos outros é uma atitude preventiva razoável que se torna gradualmente necessária. Não é assim que agem as pessoas que se sentem em uma posição de desvantagem no trabalho, na escola ou na vida amorosa e imediatamente começam a praticar intrigas e estimular a discórdia?
Depois disso trate de inventar uma nova forma de linguagem ou de comunicação que permita incutir nas pessoas que o que elas percebem por si mesmas é muito diferente da média real. Por exemplo, programas de televisão que mostram como a ocorrência de crimes é uma regra não uma exceção, relatos de vida que recortam apenas aspectos extraordinários da existência. Histórias incríveis que são incríveis justamente porque são exceções tornam-se assim uma espécie de regra. Não é assim que conquistamos interesse e atenção dos outros, trazendo conteúdos diferentes em uma forma atraente?
Um bom exemplo da combinação entre estas duas circunstâncias é o que se pode chamar de lógica da epidemia, que se anuncia em curso mundial chegando agora em versão terra brasilis. Se olharmos para os dados reais de saúde pública sobre doenças em geral e particularmente HIV-Aids, dengue, tuberculose e sífilis, encontramos uma situação problemática com letalidade aumentando. Mas a ideia de que existe um "novo vírus", portanto uma nova linguagem de transmissão, chamada coronavírus (covid-19), e que ele é contagioso e mortal, isso mobiliza um tipo de expectativa viola o que já sabemos sobre assuntos conexos.
Na peste de 1666 que assolou a Europa as cidades faziam enormes fogueiras nas encruzilhadas e ameaçavam estrangeiros com o fogo. Isso não tinha nenhuma relação com o controle do rato ou da pulga que transmite a peste bubônica, mas tinha a ver com uma teoria de que a peste afligia mais aqueles que tinham medo dela do que os corajosos. Essa teoria é totalmente falsa do ponto de vista médico, mas tem seu valor quando olhamos para o aspecto psicológico da epidemia.
A expectativa de que o vírus seja devastador, não apenas em termos de vidas, mas de impacto econômico, social e moral, cria por si só suas próprias condições de realização. As pessoas ficam em casa, os governos bloqueiam aglomerações públicas, as famílias estocam víveres, as bolsas avaliam efeitos sobre o consumo futuro e … a realidade confirma a teoria. Mas, notemos bem, isso só acontece porque agimos de uma determinada maneira consoante com nossas expectativas.
Nosso discernimento trai nossas expectativas, e nossas expectativas traem nossa experiência. Aquilo que projetamos quanto ao futuro nos revela muito sobre a natureza do mundo em que vivemos e sobre nosso próprio passado." [2]
Esta frase poderia ter sido formulada por Sigmund Freud, pois é exatamente nestes termos que a desinformação calculada e a ignorância no discernimento se acasalam com nossos desejos e expectativas. A coisa fica ainda pior se aplicarmos a este cenário o complexo de Dunning Kruger [3] que assola o país, ou seja, a tendência daqueles que desconhecem um assunto arrogarem-se sábios, justamente porque desconhecem a complexidade da matéria.
O tratamento para isso é duplo: problematizar seu próprio processo de formação de expectativas e apurar a apreensão e conhecimento sobre a história de um determinado processo. Talvez tenha sido isso que levou Freud a escolher o sonho como via de regra para a investigação do inconsciente, pois no sonho estamos diante de uma expectativa de sentido sobre a qual não sabemos de antemão qual é a regra de composição. Talvez tenha sido em sentido análogo que a psicanálise valorize a reconstrução de nossa história e das circunstâncias raras, esporádicas e excepcionais, como traumas, lutos e descobertas sexuais, pelas quais formamos nossa gramática de fantasias e nossas regras de expectativas. As duas coisas, quando examinadas de forma combinada, nos levam a tratar do engrandecimento narcísico, da soberba e arrogância, característica dos que preferem tomar decisões ouvindo apenas aqueles que concordam consigo.
REFERÊNCIAS
[1] Briaa, Christian & Grififiths, Tom (2017) Algoritmos para Viver: a ciência exata das decisões humanas. Companhia das Letras: São Paulo.
[2] Idem: 231.
[3] O efeito Dunning-Kruger é o fenômeno pelo qual indivíduos que possuem pouco conhecimento sobre um assunto acreditam saber mais que outros mais bem preparados, fazendo com que tomem decisões erradas e cheguem a resultados indevidos; é a sua incompetência que os restringe da habilidade de reconhecer os próprios erros. Estas pessoas sofrem de superioridade ilusória. Em contrapartida, a competência real pode enfraquecer a autoconfiança e algumas pessoas muito capacitadas podem sofrer de inferioridade ilusória, achando que não são tão capacitados assim e subestimando as próprias habilidades, chegando a acreditar que outros indivíduos menos capazes também são tão ou mais capazes do que eles. A esse outro fenômeno dá-se o nome de síndrome do impostor
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