Cidades mais inteligentes devem combater a lógica de condomínio
Estou aqui ao lado do mosteiro dos Jerônimos, diante de alguns pastéis de Belém, em Lisboa, depois de visitar a perspectiva a partir da qual teríamos sido descobertos. O termo tornou-se polêmico depois que descobrimos que "descoberta" sugere que nada havia no Brasil antes de 1500, negando-se assim os indígenas, sua geografia e sua história, bem como suas cidades. A tese se repete em nossa história. Por exemplo, durante a ditadura militar tornou-se um objetivo estratégico ocupar a Amazônia, como se nada ali houvesse, como se a floresta fosse uma vazio apenas porque não comporta cidades como as conhecemos.
A maior parte das aldeias indígenas brasileiras tende à forma circular, dispondo-se as ocas ora no centro ora na periferia. O formato parece dotado de uma potência natural pois sugere que em alguma medida estaríamos todos em posição de igualdade quando referidos a um centro comum.
Muitos diriam que esta sabedoria milenar é referendada pelas cidades medievais, com seus círculos murados em torno do centro em disputa e alternância, ora a igreja, ora o palácio real. Outros lembrariam que na distribuição grega, que dividia a cidade alta, onde ficava a acrópole, morada dos deuses, e a cidade baixa, onde se localizava a ágora, lugar da palavra e das trocas, só esta última era em formato circular. E foi esta que passou para a posteridade. Olinda e Recife que o digam.
A mania do círculo e a consequente disputa pelo centro talvez não foi a melhor ideia que já tivemos. Ela chama a experiência intuitiva de que há um dentro e um fora, como que a justificar a necessidade de fronteiras, muros ou demarcações. Claro que podemos imaginar indefinidas esferas se incluindo umas às outras, como no brasão do império português, onde se vê uma esfera armilar. Uma esfera com furos parece algo mais simpático que um círculo, mas ainda tem um centro.
Entre os indígenas há um povo, os Arawetés, habitantes do alto Xingu, que não fazem aldeias circulares, mas algo desordenadas, com proximidade entre casas, mas sem uma ordem geométrica definida. Talvez isso derive de uma prática que acaba por regular o tamanho das aldeias a, digamos, 150 pessoas. Depois disso a comunidade tente a, espontaneamente, se dividir em duas e começar uma outra aldeia, nem tão distante, mas também não tão perto.
Segundo alguns este número teria propriedades mágicas quando se trata da aglomerações humanas. Ele corresponde, por exemplo, ao número de amigos que conseguimos realmente gerir, quando se trata de redes sociais como o Facebook. Depois que passamos muito de 150 pessoas a discórdia se torna ingovernável pela relação direta e pessoal. Surgem então regras escritas, normas e demais dispositivos de institucionalidade.
Quando estudei a vida em forma de condomínio[1] com seus sofrimentos mais ou menos típicos, como a formação de inimigos imaginários por trás dos muros, e, dentro dos muros, o narcisismo das pequenas diferenças (competições invejosas em função de detalhes diferenciadores irrelevantes, tipo marca de roupa ou carros), percebi que a função da distância incide de forma distinta entre classes sociais.
Para os ricos, a vastidão do espaço dá a impressão de que ele é um imenso vazio, esperando pela sua ocupação. O que se reflete na ambição, sempre mais ou menos contida, de colonizar o espaço público com seus interesses privados. Para os pobres, ao contrário, a falta de espaço na cidade faz com que espaços públicos sejam sentidos como intrusivos: a polícia que invade, o poder público de despeja, a força da lei que empurra para a periferia, as prisões que condenam ao amontoamento.
Há um centro na periferia e há uma periferia no centro, mas ainda assim continuamos a pensar a circularidade burra entre um e outro.
Se queremos cidades mais inteligentes é preciso tornar o círculo uma elipse, onde temos dois focos que se revezam. É preciso colocar as escolas como ponto de recuperação do princípio da comunidade, ainda que várias tenham mais de 150 alunos. Isso significaria reduzir o teor de institucionalidade das escolas, não no sentido de fazê-las governadas pelas famílias e pelos não-partidos, mas no sentido das aldeias Arawetés, onde podemos recuperar a palavra falada como instância de mediação de conflitos.
Escolas que reduzem seus muros e se entendem também como uma comunidade concorrem para uma cidade aprendente. Não haverá sistema jurídico, policiais ou prisões suficientes para uma cidade que é incapaz de falar e de ouvir. Uma cidade inteligente começa pela palavra, pessoal, direta e intransferível como meio primeiro e fundamental para enfrentar conflitos. Se a cidade não nos ensinar isso, ela nada nos ensinará senão círculos e centros.
É típico, e cada vez mais típico, que a cidade circular seja a cidade onde tudo funciona pelo escrito, onde nada no espaço público se realize sem comprovante de residência, fichas de posse, uso e propriedade. Isso nos levou a situação que temos hoje em São Paulo, esta cidade onde o cosmopolitismo é circular como o brasão português, na qual as construções informais, sem arquiteto, habite-se e alvará cresce muito mais do que a cidade que pode receber recursos, porque está com os impostos em dia, porque sabe pedir, porque está institucionalizada.
É preciso urbanizar, regular e demarcar terras indígenas e zonas de ocupação, mas antes de tudo é preciso reconhecer de forma mais inteligente o princípio dos 150, por meio do qual a cidade tem sua própria "inteligência". Onde já existe vida inteligente antes do Estado chegar para colonizar, impondo a lei e a ordem, segundo o método do pisoteamento e da expulsão das populações para a periferia das periferias.
A tecnologia das cidades não pode mais se contentar com o dirigismo do planejamento, da ordenação por meio de uma institucionalização que não é neutra, mas que consolida os verdadeiros barões, com suas armas assinaladas, como proprietários e síndicos informais da cidade.
A circulação dentro da cidade pode melhorar muito com a internet das coisas, mas ainda não está certo se ela não trará apenas mais poder e mais recursos para a cidade formal, e mais miséria e isolamento para a cidade informal.
[1] Dunker, C.I.L. (2015) Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma. São Paulo: Boitempo.
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