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Blog do Dunker

Estes filmes nos fazem ver e fazer coisas estranhas à realidade

Christian Dunker

08/11/2019 04h00

Cena de Eli, da Netflix

Em outubro deste ano estreou na Netflix o filme "Eli", com direção de Ciarán Foy, sobre um garoto que sofre com uma doença auto-imune, que o obriga a usar um traje especial e que passa a desenvolver alucinações quando tem que interagir com pessoas reais. Parece uma regravação de "O Menino da Bolha de Plástico" de 1976, estrelado por John Travolta, só que agora, em vez de um drama médico temos um filme de terror. Já no caso do menino da bolha, o filme apresentava uma combinação sutil entre ficção e o caso real.

De fato, o caso de David Vetter ganhou repercussão mundial no início dos anos 1970, pois a Síndrome da Imunodeficiência Combinada o obrigava a uma vida dentro de uma bolha. O tema parecia premonitório para os que viram o aparecimento da AIDS nos anos 1980, mas também porque uma condição rara parecia antecipar o tema das vidas isoladas e incapazes de resistir ao efeito tóxico, representado pelo mundo. Por isso é tão difícil dizer quanto e até onde exatamente uma ficção é realmente científica e quando ela é apenas e tão somente uma ficção.    

Freud escreveu um pequeno ensaio[1] sobre contos de horror e um certo efeito de estranhamento que eles podem nos causar. Na ocasião ele estudou o conto de E.T.A. Hoffman, "O Homem de Areia" [2], no qual uma criança tem estranhos sentimentos de que uma cena infantil, envolvendo a morte de seu pai, se reatualiza na vida adulta, resultando em efeitos de pavor, delírio e alucinação.

No início Freud argumenta que apenas as pessoas com certas dificuldades com suas fantasias infantis, de natureza narcísica, estariam expostas ao efeito "unheimlich". A palavra é de difícil tradução envolvendo tanto o sentimento de estranheza familiar, como uma familiaridade estranha e ainda a sensação de que "algo que deveria ter ficado escondido repentinamente se revela". Conforme Freud examina o fenômeno em uma vasta série de contos de terror ele começa a perceber que a fronteira entre o juízo ou percepção, de extração empírica ou científica, pode não ser tão simples.

Uma linha tão discutível quanto aquela que separa a vida infantil da adulta. Ao final somos confrontados com o conflito de juízos que podem e devem habitar a ciência, bem como com a perspectiva de que fantasias narcísicas de hoje podem antecipar achados científicos de amanhã. De toda forma a aparição de efeitos de despersonalização, alucinações breves e sentimentos de desrealização, podem ser desencadeados pelo contato com imagens que realizam uma parte de nossas fantasias.

Tudo se passa como se ao associar um fragmento da ficção, gerada por um filme ou uma narrativa literária, com fantasias infantis nós voltássemos a acreditar na sua realidade, assim como um dia acreditamos. Diante disso somos levados a completar o resto da fantasia introduzindo sons, vultos e impressões que não estão lá, mas que são vividos desta maneira, como um "sinal de realidade" que toda nossa mitologia infantil poderia ser despertada.    

Exemplos de fantasias infantis comuns são a de nós não somos filhos legítimos de nossos pais, de que eles são impostores e que nossos verdadeiros pais estão em outro lugar. Fantasias de que as mulheres ficam grávidas porque ingerem um determinado alimento, que é expelido como crianças pelo ânus, ou de que podemos engravidar sentando em um lugar quente onde outro homem havia sentado antes.

Na adolescência tais fantasias vão sendo lentamente postas à prova e substituídas por um novo sentido de realidade. Por isso uma inquietação típica da adolescência é aquela que nos fez perguntar se existem filmes ou imagens que desencadeiam processos mentais "estranhos" em nós. Por exemplo, "Poltergeist" é um filme de 1982, dirigido por Tobe Hopper, no qual uma criança parece receber sinais da televisão que aparece misteriosamente ligada durante as madrugadas. Mas estes sinais surgem quando a televisão entrava no modo "estática", ou seja, quando sua tela assumir um chuvisco cinza, barulhento, indicando que a transmissão havia cessado e o canal estava fora do ar. Tal situação é semelhante à pergunta que certas crianças fazem sobre o que acontece no quarto dos pais quando eles trancam a porta. Onde eles estão quando os canais "saem do ar".

A fascinação da criança que recebia mensagens com o Poltergeist (literalmente espírito brincalhão), diante da suspensão do envio de mensagens organizadas pela televisão, era uma ótima maneira de tematizar a ideologia.  É a suspeita, verdadeira em muitos sentidos de que aquele objeto não era apenas uma inofensiva televisão. O filme evoluía para mãos que sugavam pessoas para dentro da televisão e seres sobrenaturais que emergiam da tela. O problema é que depois de ver o filme a tal estática gerada pela televisão tornou-se um símbolo do "veneno da madrugada", ou seja, esta sensação que temos quando acordamos e todos os outros estão dormindo. A angústia que deriva do fato de que nossa relação com a realidade parece se alterar substancialmente, quando estamos sozinhos. Como se a solidão externa desse luz ao bestiário interno de vozes até então suprimidas pela vida diária e suas ocupações.  

Na esteira de "Poltergeist" veio "Videodrome, a Síndrome do Vídeo" (1983) de David Cronenberg, onde cenas de tortura e violência real, supostamente rodadas na Malásia, afetavam as pessoas que recebiam as imagens de uma tal televisão a cabo pirata. A discussão sobre a realidade das imagens passou pelos filmes "snuff", pela pornografia e pelo sexo sado-masoquista. Lembro-me até hoje de minha turma do curso de Psicologia trancada numa sala vendo o tal filme, com interesse científico em mãos, mas atentos aos fenômenos reais que podiam acontecer. A trama envolvia a construção de um "acumulador de imagens" construído pelo exército, mas que gerava efeitos colaterais no corpo daqueles que assistiam ao Videodrome, por exemplo a abertura de um orifício na barriga.  Assim como em "Poltergeist", a tese do filme envolve a capacidade da televisão de realizar sugestões pós-hipnóticas e induzir efeitos alucinatórios de aspecto sobrenatural.

"A Bruxa de Blair" (1999) empregava um artifício semelhante mas por meio de outra estratégia. Neste caso um grupo de estudantes arma uma barraca para estudar o mito da existência de uma bruxa numa determinada floresta. Para tanto a investigação necessitava ser filmada em todos os seus detalhes. Notemos aqui a sólida convocação da ciência como parte indutora do efeito "unheimlich".

Pois é justamente porque as imagens nunca captam a bruxa, mas apenas e tão somente os movimentos e gritos dos adolescentes, nos faziam intuir a existência de algo que não estava lá, mais ou menos como em "Alien, o Oitavo Passageiro" (1979) e no mais recente "Atividade Paranormal" (2007). Ou seja, neste caso não é a deformação de um aspecto da realidade, mas a supressão perceptiva de um objeto o que incita o tralho de nossa fantasia para completar a realidade faltante com a nossa própria de irrealidade íntima.

No agora clássico "O Chamado" ("The Ring", 2002), série de três filmes, inspirada em uma versão original japonesa, que narravam a situação dramática de Samara Morgan, presa no fundo do poço em uma ilha deserta, o recurso empregado é de outro tipo. Trata-se da repetição de um mesmo sinal, que misteriosamente nos abduz para uma outra realidade, talvez existente apenas no sonho das pessoas. A chave da trama é que se um determinado telefonema fosse atendido, após termos contato com uma certa fita de vídeo, isso levaria a pessoa à morte em sete dias.

A tecnologia do vídeotape, hoje quase desaparecida, introduziu um fato novo em nossa fantasia cotidiana: um mesmo filme podia ser indefinidamente assistido na sua própria casa. Ao que tudo indica o suplemento tecnológico disponível nos fazia obter o efeito "unheimlich" desde outro procedimento, produzindo sensações de deja-vu ou de que aquilo que estamos vivendo já aconteceu antes. Na ilha-manicômio descobriu-se que Samara tinha o poder de alterar imagens e induzir efeitos alucinatórios nos outros. O truque funcionou levando pessoas a experimentar efeitos de pânico e terror com telefones, particularmente quando eles tocavam durante a madrugada. Novamente nos deparamos com esta estranhas sensações de que as ficções têm o poder de interferir e de criar estados de realidade insuspeitos, o que é verdade, sem que tenhamos que apelar para qualquer procedimento mágico ou sobrenatural.

Os efeitos de indução pós-hipnótica, descritos por Freud nos primórdios da psicanálise implicam certas condições para acontecer, tais como o rebaixamento da consciência, uma certa confiança na autoridade do hipnotizador e um estímulo visual ou sonoro, geralmente ritmado, para que a pessoa, em geral suscetível de ser sugestionada aceite as ordens do hipnotizador. É possível que as mensagens secretas, que Charles Manson ouvia a partir da música "Helter Skelter", dos Beatles, indicando que sua vizinha, a modelo Sharon Tate, deveria ser morta, potencializaram este efeito de completamento da realidade pela fantasia, a partir de um outro ingrediente importante e perigoso: o fechamento do indivíduo em uma bolha relacional.

A família Manson, que girava em torno do seu chefe e líder Charles, era uma bolha feita para sustentar uma realidade à parte. Ora, tais condomínios psicológicos, feitos de isolamento e de recuo com relação a tudo que confronta ou desafia os valores do próprio sujeito são o verdadeiro perigo. Dentro deles Theodor Adorno, o filósofo alemão, pode ter sido o verdadeiro autor de "Helter Skelter", como advoga Olavo de Carvalho. Contudo, um delírio não se torna mais verdadeiro apenas porque ele é compartilhado por um maior número de pessoas.

A Baleia Azul, os filmes de terror e as demais induções delirantes só funcionam a partir deste isolamento na bolha. Sem ela os filmes não nos fazem fazer nada do que já não estivéssemos fazendo antes, ainda que em nossa vida de fantasia.   

                

[1] Freud, S. (1019) O Infamiliar. Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

[2] Hoffman, E. T. A.  "O Homem de Areia" em Contos Fantásticos. Imago, Rio de Janeiro, 1989.

Sobre o Autor

Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor do Departamento de Psicologia Clínica e coordenador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Universidade de São Paulo)... além de youtuber.

Sobre o Blog

Aqui vamos discutir o impacto da linguagem digital e das novas tecnologias nos modos de produção de subjetividade, nas formas de sofrimento e na capacidade de inventar sonhos à altura de novos mundos por vir.