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Além de muros e catracas: é preciso uma aldeia para se educar uma criança

Christian Dunker

20/09/2019 04h00

Escola 94 em Jaureguiberry

Recentemente estive em uma escola construída segundo princípios de sustentabilidade no interior do Uruguai. Sob um amontoado de pneus soterrados, coleta-se ar que, uma vez resfriado, circula por entre as salas de aula, aproveitando um sistema chamado ventilação cruzada, resultando custo zero para manter a temperatura das salas.

A escola Rural de Jaureguiberry foi construída ao modo de uma Earthship (nave terrestre), com 60% de materiais naturais e reciclados, usando massa térmica, eletricidade solar, o edifício também captura a água da chuva e a reutiliza quatro vezes para consumo na escola, incluindo efluentes para a horta e filtragem umidificante por meio de plantas. A escola foi construída como parte de um projeto que a cada ano escolhe um país da América Latina para realizar um curso no qual arquitetos aprendem na prática as regras construtivas deste tipo de sustentabilidade.

O curso é bem pago pelos quase 150 alunos, que, junto com a comunidade local trabalham na obra. Com o dinheiro dos alunos, se oferece um bem permanente para a escola pública. As crianças são convidadas a um currículo alternativo no qual as características da edificação e seu uso cotidiano são incorporadas pedagogicamente. Escutando a diretora, aprendi que a sustentabilidade é um conjunto de técnicas vazias e disciplinas opressivas, se ela não se fizer acompanhar da experiência de comunidade. Sustentabilidade é um modo de fazer, um tipo de compartilhamento de saber e uma forma de circulação do dinheiro.

Este conceito de sustentabilidade afronta a equação, hoje em curso no Brasil, na qual o interesse público pertence ao Estado, assim como o interesse privado obedece, necessariamente, a lógica da empresa. A experiência da escola rural de Jaureguiberry mostra que existem maneiras de tratar do interesse comum sem que ele seja prerrogativa do Estado. Ela prova também que nem todo interesse privado possui a forma específica da empresa neoliberal e seu consequente princípio de individualização pela posse, uso e propriedade. Nem o Estado, muito menos o governo e, menos ainda, este governo é o "dono" das escolas, dos espaços públicos ou das políticas públicas.

Modelos de experiências educacionais como Reggio Emília na Itália ou o sistema de ensino público da Finlândia encontraram funcionamentos institucionais capazes de tornar a escola uma parte da cidade e uma expressão de sua comunidade. Nós insistimos em um modelo institucionalista, baseado em muros, catracas e segurança. O casamento imperfeito entre a pior tecnologia educativa, que trata pessoas como números substituíveis segundo métricas, reunida em comunidades regressivas, formadas segregativamente por traços de raça, classe ou religião. O apogeu desta bestialidade é a proliferação, ora em curso em estados como Goiás, de escolas militarizadas, onde a disciplina individualiza crianças como soldados e não como membros de um coletivo diverso e horizontal.

Maria Rita Kehl observou que o sentido da expressão "público" é diferente quando se considera pobres e ricos no Brasil. Para os menos favorecidos, o interesse público constantemente invade o espaço privado, gerando déficit de proteção e segurança. Para os mais favorecidos, o público é lugar de passagem, fonte de morosidade ou desconfiança, quando não objeto de potencial apossamento e instrumentalização. Enquanto uns sofrem com a falta de privacidade, tendo suas vidas invadidas e desrespeitadas, outros experimentam os efeitos deletérios da escassez de "publicidade", com suas vidas em estrutura de condomínio, em severo déficit de experiências de diversidade no espaço público.

Isso permite entender o motivo pelo qual é tão difícil ajudar as escolas e universidades públicas. A USP, por exemplo, tem um grande patrimônio em heranças que ela não consegue traduzir em receita. A dificuldade para receber doações diretas é inexplicavelmente complexa e obtusa. Em outros países, inclusive na África, quando alguém alcança sucesso, isso traz uma dívida simbólica com os meios e instituições que tornaram isso possível. Daí a prática das doações e a força das instituições filantrópicas. Por aqui, ao contrário, há uma espécie de ódio pelos processos. Como se os ricos não conseguissem contar, com orgulho, a história do dinheiro que têm. Como se o sucesso ocorresse "apesar" dos meios que o tornaram possível. Por isso o ódio ao discurso do mérito não é tão incompreensível assim. Estamos em décimo segundo lugar entre os países exportadores de milionários, mas nos últimos lugares dos que praticam doações em interesse público.

A relação fetichista com a tecnologia, seja urbanística, seja educativa, é parte desta paisagem. A tecnologia agindo "sem as pessoas" é o álibi perfeito para a ausência de dívida simbólica e para a explicação "mágica" do sucesso.

Mas o abismo entre escolas públicas e privadas e a desvinculação de ambas com relação à experiência comunitária da cidade depende ainda de outro motivo: o déficit programado de tecnologia jurídica. Hoje, apenas 30% das cidades brasileiras são cobertas por uma plena institucionalização dos processos construtivos. Ou seja, 70% delas realizam construções informais, sem arquitetos, alvarás, plantas ou registro na prefeitura.

A cidade que mais cresce é a cidade informal, exposta a milícias que comandam desde a distribuição de água até a televisão a cabo, incluindo os dias em que tem aula e os dias onde elas não acontecem por causa de uma operação, como desenharam as crianças da comunidade da Maré, no Rio de Janeiro. A cidade formal, onde conseguimos alocar recursos do Estado e controlar os investimentos privados, é também a cidade onde é possível "legalmente" investir. Resultado, por mais que aumente a receita, temos um gargalo educativo e urbanístico onde o custo de institucionalização impede que os latentes recursos comunitários possam ser mobilizados. Na vida real, as leis de distribuição de recursos para a educação não são aplicadas (cortes de bolsas, congelamento do Fundeb) e as leis que regulam os processos construtivos e comunitários de gestão são aplicadas tão seletivamente que asfixiam iniciativas como as que encontrei na escola rural 94 do Uruguai, esta pequena aldeia necessária e suficiente para educar uma criança.

Enquanto o dinheiro das pessoas comuns não conseguir circular em benefício do interesse público, enquanto sonharmos com saberes e tecnologias em vez de pessoas e enquanto não conseguirmos construir escolas juntos, ainda bateremos palmas para governos que destroem políticas públicas como se fossem donos e proprietários exclusivos do bem simbólico que elas representam.

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Sobre o Autor

Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor do Departamento de Psicologia Clínica e coordenador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Universidade de São Paulo)... além de youtuber.

Sobre o Blog

Aqui vamos discutir o impacto da linguagem digital e das novas tecnologias nos modos de produção de subjetividade, nas formas de sofrimento e na capacidade de inventar sonhos à altura de novos mundos por vir.