Blog do Dunker http://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br Aqui vamos discutir o impacto da linguagem digital e das novas tecnologias nos modos de produção de subjetividade, nas formas de sofrimento e na capacidade de inventar sonhos à altura de novos mundos por vir. Fri, 21 Aug 2020 07:00:57 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Mundo digital amplia lógica do “fica quieto e aceita”; como isso nos afeta? http://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br/2020/08/21/mundo-digital-amplia-logica-do-fica-quieto-e-aceita-como-isso-nos-afeta/ http://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br/2020/08/21/mundo-digital-amplia-logica-do-fica-quieto-e-aceita-como-isso-nos-afeta/#respond Fri, 21 Aug 2020 07:00:57 +0000 http://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br/?p=741

Anos atrás organizei um curso sobre Lacan e Agamben na pós-graduação. O filósofo italiano inspira uma discussão crítica sobre as vidas que podem ser mortas impunemente, em acordo com uma antiga lei do Império Romano e que recebera uma espécie de reencarnação mórbida nos campos de extermínios nazistas.

Discutíamos homo saccer e a teoria do reconhecimento necessária para enfrentar os sintomas derivados da nossa experiência brasileira dos condomínios com seus muros de invisibilidade e silenciamento do outro.

Foi então que uma aluna, aliás muito querida, fez uma pergunta altamente complexa envolvendo a atitude epistemológica da psicanálise diante do feminismo e do pensamento decolonial.

Ela sabia que eu havia estudado na Inglaterra, com uma grande teórica do feminismo e que estava a par do atraso brasileiro na tradução de autores como Spivak e Fanon. Por isso, entendi a pergunta como uma provocação, como gosto e espero de meus alunos mais afiados. Respondi como pude: aceitei uma parte, fiquei em dúvida com relação a outra e passei minha conhecida betoneira no resto.

Na saída me ofereci, como sempre, para pagar o café da paz e seguir a conversa com ela, quase certo de que cada um aprendeu um pouco e “segue o jogo”. Mas fiquei muito surpreso com o que ela me disse, com toda intimidade que lhe era permitida, durante ou depois da aula: “Chris, seu louco, este tipo de pergunta não é para responder.

Realmente, nunca tinha me havido com uma situação como aquela. Uma pergunta das boas, mas cujo novo protocolo era: “permaneça em silêncio e aceite”.

Traduzindo o evento ao longo do tempo entendi mais ou menos o seguinte: uma pergunta, em tom acusatório como aquela, não era, na verdade, um pedido de esclarecimento cognitivo, mas um posicionamento. Era uma forma de dizer, principalmente para outros colegas da classe, que uma mulher podia interpelar um professor em público. Tratá-lo como representante de uma longa cadeia de opressões, subsidiado em instituições que durante anos e séculos escondiam preconceitos, praticavam desfavorecimentos e sancionavam iniquidades contra mulheres e outras minorias.

Minha aluna deixava claro que não era nada “pessoal”. A demanda de reconhecimento deveria ser respondida com a escuta em silêncio e assentimento. Como se ali estivesse um representante do poder público sancionando a dívida simbólica, produzida pela violência e segregação continuada.

Tratava-se de uma cena pública e da luta por reconhecimento, por parte de vozes há muito despossuídas de sua possibilidade de fala. Desde então me acostumei com atos de denúncia crítica, recorrentes na composição monocromática de cursos, mesas de debates e reuniões científicas.

Entendi então que estava em curso uma transformação muito importante do que eu havia chamado, até então, de “debate acadêmico”. Uma transformação gerada não pela sua retração ao nível cada vez mais exclusivo da conversa escrita entre especialistas, mas pela sua súbita e inesperada ampliação graças aos meios digitais.

Tive que aposentar minha antiga ideia “revolucionária” de que poderia usar a sala de aula como um ambiente de suspensão das diferenças e circulação livre da palavra, ao modo de um jogo de futebol, no interior do qual, respeitadas as regras, vence quem joga melhor, com argumentos, ideias e demonstrações. A liberdade artificial, assim criada, não passava de um exemplo a mais de como vivíamos um estado de falsa liberdade, com artifícios de igualdade.

O argumento replica a crítica acertada de que apenas teoricamente vivemos um estado de igualdade diante da lei, que seria equitativamente aplicada para todos, gerando um estado de competição salubre, baseado em méritos, na produção coletiva e partilhada de estados de verdade ou consensos racionais, universais e científicos.

Na prática o mundo é composto pelo crescimento da segregação, da acumulação de riqueza nas mãos de cada vez menos pessoas, de reprodução do poder político e de amarga continuidade da dominação.

Lendo Adorno aprendi a desconfiar de universais, lendo Freud percebi que a razão tem torções inesperadas e lendo Foucault percebi que a ciência é também poder e coerção.  Isso contrasta com um dos piores vícios acadêmicos que é a mania de achar que somos donos, sócios ou proprietários de temas, ideias e autores.

No fundo, a nova estratégia das lutas, assim chamada, mal ou bem, identitárias consiste em romper protocolos de transformação institucionais. Estes são sentidos como demasiadamente lentos, insuficientemente práticos, constantemente parasitados por impostores e historicamente desviados para a conservação do capital social financeiro e cultural nas mãos de um mesmo biotipo social: homens, brancos, de classe alta, heterossexuais, bem educados, de extração européia … ou equivalentes. Como diz a antiga música do R&M: “that’s me in the corner.

É o que Lacan chamaria de uma mudança de discurso, ou seja, uma alteração das regras básicas do futebol acadêmico que eu aprendi a jogar. É o retorno de nossa própria mensagem de maneira invertida: a violência que praticamos durante anos, perpetrando a colonização com a promessa de ideias neutras e universais, pode ser melhor escutada pelo apontamento de que ideias têm cor, têm raça e têm gênero. A beleza branca, a justiça branca, a verdade branca. Isso pode e deve ser apresentado de forma violenta ou transgressiva, ao modo de um espetáculo, como o que eu estava convidado a participar, ainda que de maneira desavisada, em minha longínqua aula de pós-graduação.

É bastante razoável, neste contexto, a distribuição de um bônus reparador, o reconhecimento de uma espécie de dívida simbólica, histórica e atual, que marca a desigualdade no interior das lutas e conflitos. Não partimos da igualdade, fictícia ou ideológica, por isso ela não pode ser invocada como regra geral do jogo do conhecimento, da palavra ou da cultura.

Reconhecer desigualdades é reconhecer a incidência diferencial da lei sobre os corpos e suas cores, disposições ou traços de exceção. O que está em questão, portanto, não é a defesa da universalidade humana, nem da palavra como mediador universal, nem dos direitos universais do homem, mas a realidade última e real do sofrimento diferencial entre as pessoas.

Chegamos assim ao forte impulso que as estratégias ditas identitárias recebem quando se organizam ao modo digital. São casos recorrentes em  torno da prerrogativa discursiva na representação de raça, como os de Fernanda Torres (em relação afetiva com uma funcionária doméstica), Lilia Schwarcz (em relação a sua crítica do videoclipe de Beyoncé), Fernanda Diamant (ex-curadora da Flip criticada pela escolha de Elizabeth Bishop, poeta americana, como autora homenageada), mas também de Djamila Ribeiro (criticada pelo movimento antiencarceramento) e Anitta (por se apropriar de músicas de Ludmilla).

Prosperam casos de cancelamento, lacrações, denúncias ou ataques a pessoas, particularmente intelectuais de esquerda ou influenciadores culturais que enfrentam rituais de culpa e expiação. Enquanto isso continuo a ler Plutarco[1] e meditar sobre a importância que ele dava a arte de escolher nossos inimigos.

Confesso que ainda não sei exatamente como agir.  Não posso tratar qualquer um como igual porque efetivamente estaria desqualificando a desigualdade reinante. Por outro lado, suspender as regras do jogo e interiorizar o conflito entre os que estão do mesmo lado, parece uma estratégia pouco efetiva. Criar rituais de culpa e expiação, ainda que necessários de vez em quando, também são muito pouco transformativos.

Poderia discutir minha “branquitude”, de modo a desconstruir as raízes de meus privilégios e fazer a autogenealogia de meu poder. Mas não sei bem como devo ajustar contas com meus antepassados.

Se penso no lado materno de minha bisavó indígena e negra, estuprada por um branco quando estava doente de tifo, quando penso que ela teve que doar minha querida avó mulata  para uma missão religiosa, não sei bem se defendo uma mulher periférica e violada ou se me arrependo por descender de um português aristocrata babaca.

Se penso em meu avô paterno, desaparecido na Rússia, lutando pelo exército alemão nazista da Wehrmacht, sou corroído pela culpa infinita e pela dívida, jamais inteiramente enunciada, com o povo judeu.

Se penso em meu pai, cuja vida foi destroçada pela experiência da guerra, detesto os aliados. Se penso na democracia e na liberdade, acho que ele mereceu, como todos os alemães que permitiram a ascensão de Hitler.

Se penso em meu tio negro, se lembro de seu sofrimento sendo discriminado, mesmo tendo um pai alemão branco de olhos azuis, mas motorista de táxi, fico de novo em dúvida.

Neste ponto me lembro do comentário de minha querida aluna: não se trata de mim, mas do que eu represento.

Em suma, vivo uma contradição entre “don’t take it personal (não devia tomar estas violências acadêmicas pessoalmente) e “political is personal (o político é sempre pessoal). São ambos verdadeiros e acredito nisso.

Ou seja, não se trata de mim, mas dos imensos tantos outros, negros, mulheres, periféricos e LGBTQI+ que não tiveram a mesma sorte. Eles são a regra e não a exceção.

Eu, assim como meus amigos negros, meus camaradas homossexuais, meus companheiros periféricos, minhas queridas funcionárias indígenas, não somos desculpa, nem justificativa ou isenção para nada. Este discurso não se endereça a mim, mas ao que eu represento, independente de minhas circunstâncias e de minha história.

Como disse minha aluna: preciso aceitar isso, de preferência em obsequioso silêncio.        

REFERÊNCIA

[1] Plutarco (2015) Como tirar Proveito de nossos Inimigos. São Paulo: Edipro.

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Nova norma de financiamento do governo promove o cancelamento da ciência http://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br/2020/08/14/nova-norma-de-financiamento-do-governo-promove-o-cancelamento-da-ciencia/ http://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br/2020/08/14/nova-norma-de-financiamento-do-governo-promove-o-cancelamento-da-ciencia/#respond Fri, 14 Aug 2020 07:00:46 +0000 http://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br/?p=697

Movimento na biblioteca da FFLCH, na Universidade de São Paulo, na capital paulista (Cecília Bastos/ USP Imagem)

Muitas das dificuldades encontradas pela expansão do negacionismo científico podem ser atribuídas ao fato de que muitas pessoas não possuem envolvimento direto com a ciência, não sabem como ela se mantém, nem tem uma ideia, ainda que rudimentar, de como ela acontece. Uma pesquisa recente constatou que 90% dos entrevistados não sabem nomear pelo menos um cientista brasileiro, 88% não sabiam apontar uma instituição sequer que faz pesquisa no país e nenhuma universidade foi lembrada como lugar de produção confiável de conhecimento. Surpreendentemente a tendência a respeitar a ciência, gostar de temas científicos e atribuir autoridade aos cientistas é proporcional à desinformação que recai sobre ela. Uma representação sob bases experienciais tão frágeis pode ajudar a explicar porque a percepção de benefícios trazidos pela ciência caiu de 55% para 31% de 2015 a 2019,  e porque a confiança na ciência parece uma tendência decrescente.

É possível que boa parte da confiança e otimismo em torno da ciência advenha de uma confusão com a tecnologia, ou seja, objetos e procedimentos palpáveis renovam continuamente uma imagem de progresso. Por outro lado nunca sabemos porque mesmo o novo é mais caro, e como ele é efetivamente melhor. Algo análogo pode ser intuído na relação entre ciência e universidades. Como estas últimas ainda estão associadas com ascensão social, incremento e ganhos futuros, a ciência se associa vagamente com esta progressão e utilidade.

A pandemia de covid-19 ofereceu uma nova visibilidade sobre a ciência. Ela precisa estudar o funcionamento do vírus com sua capa de gordura em torno do RNA. Ela se integra com a tecnologia, na testagem e no processo produtivo em escala de massa das diferentes vacinas. Ela informa e municia a saúde pública, sugerindo regras de distanciamento social em conformidade com as curvas estatísticas de reprodução do vírus. Ela estabelece instruções sobre o comportamento protetivo, como o uso de máscaras, assim como o impacto disso tudo na saúde mental. Espera-se dela considerações éticas sobre a confrontação com a vida ou e a morte.

Ma assim como se descobre o valor da liberdade quando se a perde, estamos a discutir o valor da ciência quando estamos prestes a vê-la desmontada. Em uma iniciativa sem precedentes na história da ciência brasileira o Ministério da Ciência e Tecnologia, depois de muita confusão e em sequência a uma série de medidas erráticas, acaba de estipular áreas prioritárias de investimento em pesquisa, que definirão a distribuição de bolsas e consequentemente o investimento na ciência. Isso significa uma mudança no atual critério de distribuição de investimentos e bolsas. Atualmente cada área tem uma relativa autonomia para destinar montantes de pesquisa, segundo problemas e escolhas mais promissoras para os que estão mais próximos da pesquisa. Agora isso será feito indiretamente pelo “Estado”. Contrariamente ao espírito “liberal” que comada a maior parte das políticas científicas mundo afora, aplica-se aqui o princípio do hegemonismo cultural, neste caso hegemonismo científico, que vemos constantemente denunciado pelo próprio governo.

A nova fórmula sugere que os investimentos devem ocorrer por projeto, logo nas áreas prioritárias, decididas pela “cabeça central estatal” a saber:

  • Tecnologias Estratégicas (espacial, nuclear cibernética, segurança pública, segurança de fronteira);
  • Tecnologias Habilitadoras  (inteligência artificial, internet das coisas, materiais avançados, biotecnologia, nanotecnologia);
  • Tecnologias de Produção (indústria, agronegócio, comunicações, infraestrutura, serviços);
  • Tecnologias para o Desenvolvimento Sustentável (cidades inteligentes, energias renováveis, bioeconomia, resíduos sólidos, poluição, desastres naturais, preservação ambiental);
  • Tecnologias para Qualidade de Vida (saúde, saneamento básico, segurança hídrica, tecnologias assistivas).

A lista parece ampla, mas na verdade é extremamente restrita em suas 24 categorias, comparada com as quase 1.281 descritas na tabela de áreas de ciência hoje em vigor na Capes. Observe-se que todas as prioridades são definidas como áreas tecnológicas e não científicas. Áreas inteiras como o direito e as ciências humanas não são prioridade, muito menos a matemática pura ou a chamada ciência básica, nas quais se faz o pesquisador.

O gesto é um tipo de cancelamento da ciência. O governo apoia-se em decisões que mimetizam a gramática digital: aqueles saberes que não me representam eu os cancelo e gostaria que eles não existissem. Se eles criam contrariedade e dissenção, elimine sua fonte de sustentação. Se há disputa sobre a autoridade para fazer isso, basta que eu tenha algum agrupamento de opiniões favoráveis e conte com a desinformação e a precariedade do debate.  Aquilo que não gosto coloco para fora e derrogo sua existência histórica. Aquilo que me interessa basta para representar o todo.

Diferentemente da política de muitos países vizinhos, durante muito tempo o Brasil investiu pesado na formação de um parque de pós-graduações envolvendo todos os estados e tendente a interiorização. Ao contrário de países europeus e mesmo universidades americanas de ponta, como Harvard e Yale, nós fizemos um esforço brutal para criar e manter universidades públicas de massa e ao mesmo tempo capazes de participar do universo da pesquisa científica. Isso envolve um sistema que basicamente começa na graduação, nas chamadas Iniciações Científicas, quando um aluno desenvolve sua afinidade com a temática de um determinado professor e começa a acompanhá-lo mais de perto. Depois disso, ele passa ao mestrado e ao doutorado, onde cumpre disciplinas e se integra a um determinado núcleo ou laboratório de professores. Dali para frente sua vida será ler, fazer experimentos, escrever artigos científicos e participar de congressos, seminários e encontros de sua área. Seguindo este modelo investimos no qual nossa pesquisa poderia interligar áreas diferentes com maior facilidade, uma vez que a pesquisa aconteceria em universidades com aspiração a integrar todos os saberes. A experiência obteve um resultado significativo, pois efetivamente produziu um conjunto extenso de universidades de acesso gratuito, várias delas bem colocadas em rankings internacionais. Mas com o corte de bilhões e a inadimplência das universidades federais, daqui a três ou quatro anos se poderá dizer que ela são improdutivas e compõe mais um serviço público desqualificado. Quando se observa os rankings nacionais comparando universidades públicas, que fazem pesquisa, com as privadas, onde ela é opcional, o resultado é massacrante em favor das públicas.

Aqui temos uma espécie de contraexemplo maldito. Quando ouço dizer que os impostos brasileiros são altíssimos pela qualidade dos serviços prestados, não sei muito bem como isso se aplica à saúde ou educação básica, às estradas ou cuidados com a cidade, mas no terreno da ciência isso é uma tolice. Justamente, naquela área onde o saber humano parece ser mais livre para criar e desafiar o instituído, naquela atividade que seria o objeto da mais livre concorrência entre “cérebros” as públicas derrotam as privadas, digamos por 7 a 1.

Depois de quase 30 anos de abertura para a “livre iniciativa universitária” o resultado é desastroso. Faculdades pífias, conglomerados riquíssimos, que não prestam satisfação a ninguém. Enganam alunos e oprimem professores com sistemas administrativos baeados em pactos de  produtividade mediocridade. Tudo isso baseado em financiamento estatal (não é o BNDS), via Fies e quejandos. Lugares de corrupção ordenada, impérios criados pelo favorecimento de licenciamento e concessões, proteções tributárias, no pior estilo da corrupção nacional. Ali não há doutores, os currículos são reduzidos e o resultado é um fast-food baseado na diminuição dramática da quantidade de “proteínas científicas” nos cursos de graduação.

Apesar disso tenta-se agora uma intervenção na ciência semelhante a que quase passou com a cultura. Tentam convencer as pessoas que a ciência e as universidades deveriam ser mais úteis. Segundo o verdadeiro espírito da “Universidade com Partido” escolhem dirigi-las para as áreas mais “importantes”, porque rentáveis ou estratégicas, segundo seu próprio ponto de vista. Não se contentando com a redução sucessiva de orçamentos, com a troca errática de ministros da educação, com a tentativa de fundir o Ministério da Ciência e Tecnologia com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal (Capes) decretam agora a intervenção na ciência (já que no STF está um pouco mais difícil, por hora). Sem a menor coordenação entre o financiamento da pesquisa, que historicamente fica a cargo do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e a formação de pesquisadores a cargo da Capes, a ideia é introduzir um dirigismo científico que colocará a perder 50 anos de investimentos na área.

A ironia é que isso acontece no mesmo ano que, pela primeira vez na história há mais negros do que brancos nas universidades públicas do país, e pela primeira vez há mais alunos egressos de escolas públicas do que particulares na USP.

O antigo ministro da economia Delfim Netto, dizia que primeiro é preciso fazer o bolo crescer, para depois disso dividi-lo melhor. Tudo se passa como se agora que conseguimos democratizar e criar um canal de ascensão social para grupos menos favorecidos, agora que chegou a hora de dividir o bolo, nós vamos jogar o creme fora, envenenar o recheio e vender as velas, porque estas sim servem para nos iluminar. Sim, há uma parte que cabe aos cientistas neste bolo. Durante anos nos preocupamos pouco com a divulgação científica, com a formação de professores de ciência e com a presença da ciência no enfrentamento dos problemas reais, inclusive políticos do país.

Viramos as costas para problemas emergentes e constituímos uma casta de burocratas fanatizados por avaliações e normas. Não fizemos por onde criar uma carreira de pesquisador, como carreira de Estado. Estimulamos a cizânia epistemológica e a hierarquização dos saberes, no mais pobre espírito de condomínio científico. Vendemos nossa alma para subir a nota na Capes, ainda que isso foi importante, até certo momento, para nossa profissionalização. Segregamos saberes em nome da pseudo-pseudo-ciência e da pureza das almas dos empreiteiros de bolsas e seus narcisismos de ocasião.  Fizemos ouvidos moucos para a exploração da mão de obra barata dos doutorandos, dos assédios e das marmeladas nos “peer reviews” [revisão por pares].

Boa parte desta operação só pode acontecer alimentada pela instrumentalização do espírito de negação da ciência como um saber de todos, feito por qualquer um, em uma língua comum que não exclui ninguém.

Foi fácil demais fazer os convidados engolirem o combo antipolítica e antiestablischment. É assim, depois de criado o fantasma da anti-universidade, que nós podemos desmontá-la quando ela se torna mais universal. Lindo jeito de fazer crescer o bolo e comer ele todo, mais uma vez. Esta força da ciência como expressão da razão foi facilmente derrubada pela lógica das opiniões e pelo culto de impressões. Ironicamente isso acontece quando a ciência se tornou mais próxima às pessoas. Por meio das tecnologias digitais é possível hoje ter acesso à maior parte dos artigos científicos do mundo. As bibliotecas se abriram e as informações ficaram disponíveis e transparentes.

Mas parece que tudo isso serviu para dizer que a cultura e a ciência são de graça. Caem do céu como a chuva e nascem de graça como as árvores. Como se não precisassem de água e pudessem ser livremente desmatadas por queimadas. Como está tudo ali, aqueles que se dedicam a cuidar do jardim só podem ser impostores, corruptos ou suspeitos. Estes que não sabem justificar sua própria utilidade.

Quando se esperava um aumento do reconhecimento da cidadania, quando a ciência e a cultura tornam-se mais inclusivas há um efeito de revolta contra os próprios instrumentos de emancipação. Efeitos destrutivos de uma subjetividade para a qual a ciência se tornou escrava da tecnologia e para quem a educação só serve como adorno ou instrumento.

A paixão da ignorância destrói as coisas não tanto pelo que ela desconhece, mas pelo que ela acha que sabe.

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Intelectuais distorceram reflexão sobre liberalismo, fascismo e Bolsonaro http://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br/2020/08/07/resposta-ao-que-nao-foi-dito-sobre-liberalismo-fascismo-e-bolsonaro/ http://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br/2020/08/07/resposta-ao-que-nao-foi-dito-sobre-liberalismo-fascismo-e-bolsonaro/#respond Fri, 07 Aug 2020 07:00:09 +0000 http://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br/?p=701

Jair Bolsonaro na rampa do Palácio do Planalto (Alan Santos / PR)

Em resposta ao texto que elaboramos sobre as afinidades do bolsonarismo com o fascismo, publicado em Ilustríssima, na Folha de S.Paulo, um grupo de pensadores reagiu com um artigo sobre “Desafios de uma Sociedade Aberta“.

Nosso artigo partiu de uma caracterização clara para examinar a hipótese do fascismo à brasileira: a proposta de armar a população brasileira, as agressões físicas e as tentativas de intimidação a jornalistas e membros do STF, a formação de grupos armados e milicianos ligados ao bolsonarismo [1].

Reconhecendo a complexidade definicional do fascismo, escolhemos fixá-lo como um tipo de discurso e um conjunto de estratégias, que, e essa era nossa pergunta, haveria de ter algum precedente histórico em nosso país. Foi assim que chegamos tanto ao integralismo de Plínio Salgado, quanto a ditadura militar brasileira e seus temas como a violência em nome da defesa da família e da alma brasileira.

Era uma forma de caracterizar historicamente o paralelismo entre bolsonarismo – em sua dupla base de defensores da violência como método – e do neopentecostalismo de resultados – como instrumento de moralização da política.

A aliança entre Deus e Nação, cuja retórica dominante é a do líder pai capitaneando seus filhos e irmãos e localizando seus adversários como inimigos corrompidos, justifica o traço de mobilização das massas característico do fascismo.

Nosso artigo acentua que o nexo econômico deste novo fascismo é confuso. Submisso a outra potência estrangeira, mas desmonta aspectos do Estado protetor. Reduz o impacto da Constituição de 1988, em acordo com uma agenda de austeridade, mas se atrapalha nas reformas tributária, administrativa e previdenciária, que até aqui dependeram mais do legislativo. Reconhecemos a anomalia de Bolsonaro neste caso:

“É verdade que a maior parte das experiências historicamente identificadas como fascistas não foram economicamente liberais, bem ao contrário, mas isso não quer dizer que exista uma relação unívoca entre fascismo e estatismo.” [2]

Nossa hipótese de fundo é de que o bolsonarismo realizou uma aliança entre conservadores-autoritários e fascistas. Este casamento foi realizado sob a égide da luta comum contra o petismo e a corrupção, em nome do impulso anti-institucional e da antirrepresentação política. Ele fez ressurgir os piores capítulos de nossa história política: a glorificação de torturadores, o menosprezo pelas minorias, a confrontação com o judiciário, a convocação para o golpe.

Nossa preocupação primeira e final, neste texto é com violência, militarização e  arbitrariedade. Nele a associação do fascismo com o liberalismo é assumidamente contingente, como o leitor pode conferir acima. Portanto, qual não é a surpresa quando um grupo organizado intelectualmente começa declarando que:

“Não é intelectualmente honesto argumentar que exista qualquer conjunto de ideias e fatos históricos que liguem liberalismo e fascismo.” [3]

A afirmação é falsa, não corresponde ao que se enuncia em nosso artigo e exemplifica exatamente o tipo de retórica ofensiva e desqualificativa que estamos criticando. Ela é falsa porque Ludwig Von Mises, prócere neoliberal, que dá nome ao instituto que reúne nossos críticos, declarou:

“Não se pode negar que o fascismo e movimentos semelhantes, visando o estabelecimento de ditaduras, são cheios de boas intenções e que sua intervenção, em dado momento, salvou a civilização europeia. O mérito que o fascismo ganhou assim, por si só viverá eternamente na história.” [4]

Portanto, há uma afinidade de ideias entre liberalismo e fascismo. Se de fato o fascismo viverá eternamente na história porque ele não poderia voltar no Brasil de nossos dias?

Uma leitura honesta de nosso texto teria destacado passagens onde afirmamos que o bolsonarismo inverte “o discurso de proteção”, que costuma caracterizar o fascismo, em submissão ao trumpismo:

“(…) política econômica ultraliberal de destruição planejada da capacidade de intervenção do Estado. Este traço não estava presente na experiência pretérita do integralismo (…)”. [5]

Qual a dificuldade em ler esta cláusula de exceção? Qual a dificuldade em perceber que o objetivo de nosso texto é o discurso e estratégia fascista em Bolsonaro e não responder a pergunta que parece corroer a consciência de nosso interlocutores: o fascismo é um liberalismo?

Nossos críticos acabam por retratar, ao modo de paródia involuntária, a própria tese que queríamos demonstrar. Fugindo da hipótese que levantamos, o texto retoma a narrativa de ocasião sobre “o sonho comum de comunistas e fascistas”. Como se Plínio Salgado fosse a comunista.

O texto avança com expressões anacrônicas como “fúria bolchevique. Sobre o ódio e violência do discurso bolsonarista, nem uma palavra. Talvez porque tenhamos aqui um exemplo derivado de sua retórica. Seja agressivo, desqualificativo e acuse os outros para depois colocar a culpa da polarização na falta de tolerância. Como se bastasse ativar o botão “anticomunismo” para todas as razões se ajoelhassem.

Continuemos com a deriva.

Sim, Getúlio Vargas teve uma relação ambígua com os fascismos, mas será que esta ambiguidade com o liberalismo também não faz parte da volta dos fascismos?

Sim, o fascismo perseguiu líderes liberais, mas ele também atacou líderes comunistas.

Sim, “sociedades abertas se definem pelo desacordo, pela legitimidade do outro e pelo debate equilibrado, mas não, isso não pode ser feito acusando aqueles que não concordam conosco de “desonestos intelectualmente”.

Sim, Bolsonaro foi eleito democraticamente, em alternância de poder, em meio a polarização política da sociedade, mas não, de jeito nenhum isso foi obra do “Fora FHC”, iniciado pelo PT vinte anos atrás.

Em vez de admitir que talvez, ao menos em parte, Bolsonaro tenha sido eleito também por sua plataforma neoliberal de Posto Ypiranga, nossos adversários apontam uma epigênese no conflito político no genérico “Fora FHC”, como se não tivesse havido um “Fora Sarney,” um “Fora Collor”.

O ministro da Economia Paulo Guedes (Divulgação)

Contudo, o máximo da negação e da recusa a admitir o teor agressivamente problemático do bolsonarismo acontece quando nossos críticos chamam de “transição exemplar na vida republicana brasileira os três anos em que afastou-se uma presidente, subiu ao poder um vice compromissado com a corrupção, aprisionou-se políticos, incluindo um líder da câmara e um ex-presidente, em meio ao alto grau de instabilidade jurídica, institucional e crise econômica. É como dizer que “fizemos uma transição exemplar pela covid-19 porque só morreram 100 mil pessoas, as outras sobreviveram, e viva nossas instituições”.

Depois disso o texto se espraia em divagações sobre o impacto das tecnologias digitais na política, as ditaduras de Castro e da Venezuela, o BNDES.

A enunciação do texto mobiliza imagens negativa da esquerda, em vez de enfrentar os argumentos. Quando estamos quase cansando desta retórica aparece um ponto de potencial convergência com o que dizemos:

“[Paulo] Guedes é um nome historicamente vinculado ao pensamento liberal no país, mas sua agenda dispõe de um consenso frágil dentro do governo (…)”. [6]

Nosso texto sugere que o casamento entre liberais-conservadores e fascistas é a causa da ascensão de Bolsonaro. A polarização, o ódio e a esquerda “hegemônica” são efeitos. É exatamente este fascínio dos liberais de direita por tudo que é anticomunista que os leva aos braços do fascismo.

Landau, Schüler et alii afirmam que a “cultura despótica na base da sociedade brasileira” fez parte deste processo. Aqui temos um diagnóstico em comum. O que nossos críticos não conseguem perceber é sua própria leniência e aliança com esta mesma cultura. Quando dizem que “a expressão do ódio deve ser livre, desde que não afete as instituições”, quando não dedicam nenhuma palavra ou argumento contra o discurso desqualificativo e a estratégia de violência em Bolsonaro, assim se exemplifica o pacto com a “cultura despótica.

O bolsonarismo é um discurso de incitação à violência e a segregação. Ele não faz mal apenas às instituições, mas também às pessoas e às comunidades. As instituições, seus pesos e freios, tudo isso pode estar funcionando perfeitamente, mas não mudará em nada o fato de que o discurso continua a ser fascista ainda que suas aspirações não estejam realizadas.

Se ele é bem-sucedido em seus propósitos, se ele conseguirá implantar seus objetivos, se isso dominará a realidade, ainda não sabemos. O que podemos saber é que há alguns tentando nos advertir contra isso e outros tentando apagar a aliança contingente com este discurso.

A desonestidade tem perna curta. Ela começa acusando os outros pelo que eles não disseram, continua afirmando fatos que não aconteceram e termina em uma autocontradição performativa: “nós não gostamos de polarização, ela é a causa do problema, não é, seus comunistas desonestos?

 

[1] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/06/por-que-assistimos-a-uma-volta-do-fascismo-a-brasileira.shtml

[2] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/06/por-que-assistimos-a-uma-volta-do-fascismo-a-brasileira.shtml

[3] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/08/associar-liberalismo-ao-fascismo-nao-e-intelectualmente-honesto.shtml

[4] Myses, L. V. (1927) Liberalismo. São Paulo: LVM, 2010.

[5] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/06/por-que-assistimos-a-uma-volta-do-fascismo-a-brasileira.shtml

[6] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/08/associar-liberalismo-ao-fascismo-nao-e-intelectualmente-honesto.shtml

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Droga, comercial ou pornô na web dão “gatilho”? Saiba o que isso quer dizer http://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br/2020/07/31/droga-comercial-ou-porno-na-web-dao-gatilho-saiba-o-que-isso-quer-dizer/ http://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br/2020/07/31/droga-comercial-ou-porno-na-web-dao-gatilho-saiba-o-que-isso-quer-dizer/#respond Fri, 31 Jul 2020 07:00:03 +0000 http://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br/?p=685

Andrea Piacquadio/ Pexels

Anos atrás estava dando uma aula de psicopatologia quando tive que entrar nos detalhes de um caso de anorexia, envolvendo os efeitos debilitantes a longo prazo da falta de nutrientes e da descompensação bulímica. Foi quando uma aluna ergueu o braço e comentou: “professor, o senhor não devia falar disso sem avisar antes porque dá gatilho”. Demorei alguns instantes para entender o sentido da palavra “gatilho” naquele contexto. Depois de algum trabalho de análise de discurso se aclarou o seguinte movimento:

  1. A expressão “gatilho” surgiu no ambiente psicológico brasileiro nos anos 1990 quando a aparição do HIV-Aids reforçou as campanhas contra o consumo de drogas, principalmente as drogas injetáveis. No processo de descontinuação do uso seria muito importante localizar e depois se afastar das circunstâncias que favoreceriam o uso –por exemplo, certos ambientes, certos amigos, certas situações de ansiedade ou contrariedade– que poderiam compor os “gatilhos” que desencadeariam recaídas para cada um. Afaste-se dos gatilhos. Era essa a recomendação para aqueles que estavam demasiadamente expostos a transtornos de adicção, impulsão e compulsão.
  2. Nos anos 2000 o “gatilho” esteve associado à grande metáfora trazida pelos antidepresssivos. Segundo ela, a depressão é causada pelo desequilíbrio de serotonina, dopamina ou adrenalina no cérebro. O desequilíbrio destes neurotransmissores tem uma causa genética e independe das nossas formas de vida e são indiferentes ao modo como falamos, trabalhamos ou desejamos. No entanto, a depressão se desencadeia por meio de certos estímulos ambientais desfavoráveis, tipicamente ansiogênicos ou estressantes.
    A imagem é perfeita para quem pensa que o gatilho (trigger) é parte de uma arma, como um revólver, que dispara, sabe-se lá contra quem desde que algo ou alguém aperte o gatilho. Depois de apertado não há muito o que fazer, nos resta apenas um circuito de ações mecânicas que vão da liberação do cão (a parte traseira da arma), o choque contra a espoleta, a explosão no tambor e a emissão da bala pelo cano. Ou seja, há apenas um momento no qual podemos efetivamente fazer alguma coisa e este envolve a detecção do que para cada pessoa faz o papel de gatilho.

Segundo Orlando Coser [1], na trilha de Susan Sontag [2], as doenças convocam metáforas que tornam as explicações científicas acessíveis e encadeadas com narrativas cotidianas. Considere por exemplo, o uso corrente de expressões “ele lutou até o fim a batalha contra o câncer” ou “a guerra contra a covid fez mais uma vítima”.

Nada mais antigo e hipocrático do que pensar o adoecimento como um análogo da guerra: é causada por um inimigo intruso, que debilita a unidade e funcionalidade de nossos corpos, exige mobilização de tropas de defesa imunológica (anticorpos) e um conflito para expulsar o alienígena que tomou conta de em nosso corpo.

Imagine agora aqueles que “perderam” a guerra, que não foram “corajosos o suficiente”? Metáforas sempre têm um sentido mais extenso ou menos intenso do que aquilo que elas metaforizam.

  1. Nos anos 2010 a internet tornou-se um instrumento inédito de alcance e comunicação entre os brasileiros. Com ela abriu-se o campo para a postagem de imagens de todo tipo, muitas delas envolvendo violência, erotismo e bizarrices de todas as formas. Ao mesmo tempo as metáforas cerebrais começaram a ser exportadas para todas as partes do mundo [3] como condição básica para nossa autointerpretação como uma cultura depressiva.
    Se considerarmos que os “gatilhos” tinham sido parte de nossa narrativa mestre em termos de saúde mental nas duas décadas anteriores, nada mais óbvio do que o uso de “gatilhos” como meio de atrair a atenção das pessoas, afinal isso era precisamente o tipo de estímulo contra o qual elas deveriam estar preparadas e advertidas. Mas neste ponto já havíamos cruzado um outro Rubicão em termos de saúde mental, aquele que diz que toda forma de contradição, contrariedade e conflito deve ser evitada, como uma maneira de induzir saúde mental. Ora, este é um princípio totalmente falso e em desacordo como a ideia original de “gatilho”.
    Doravante, tornou-se óbvio que há uma responsabilidade “social” daqueles que enviam mensagem que podem gerar conflito.
  2. Nos anos 2020 o uso de “gatilhos” tornou-se ferramenta para o marketing e uma estratégia para aumentar o alcance e visibilidade de qualquer postagem. Formou-se uma espécie de regramento para o consumidor digital e uma moralidade baseada no consentimento prévio. Conectada com a prática da “lacração” e a cultura do cancelamento, esta moral baseia-se no direito a restrição: “apaga porque dá gatilho”.
    O gatilho deixou de ser o spoiler da psicopatologia para tornar-se sinônimo de “gerou reações que eu não previa quando cliquei”. Nisso mistura-se pornografia e violência com tudo aquilo ao qual fui “exposto” sem aviso prévio ou consentimento declarado de que queria receber.
    Por outro lado, os gatilhos passaram a ser entendidos também como indutores de reação, e entre elas as reações de compra e engajamento. Há gatilhos que enfatizam:
    A escassez (“compre ‘djá’ senão acaba”);
    A urgência (“chegou a White Monday”);
    A novidade (“foi lançado um novo gozofone”);
    De prova social (“seja você também um boomer”);
    De autoridade (“segundo Universidade Olavo de Carvalho o gatilho sempre manda”);
    Reciprocidade (“experimente esta zica que não sairá do seu computador grátis por 15 dias”):
    Causalidade (“participe deste movimento pelo fim dos movimentos”):
    Antecipação (“o lançamento do século”);
    Simplicidade (“você nem perceberá seu cartão de crédito gemer”):
    E cálculo do gozo (“enlarge your penis now”).
    Um autor como Augusto Cury, totalmente inconsequente do ponto de vista da teorização psicológica séria, vende milhões de livros ensinando como fechar “janelas killers e evitar gatilhos ruins para sua vida mental.

Alargado e generalizado desta maneira a noção de gatilho se aproximará curiosamente de tudo e qualquer coisa que adquire alguma reatividade em nossos complexos psíquicos.

OpenClipart-Vectors/ Pixabay

O tema foi assunto da aproximação entre Freud e Jung nos anos 1900-1910, envolvendo estudos experimentais em torno do tempo de reação, do choque e da hiperassociação gerada por uma determinada palavra. A ideia de complexo, proposta por Jung, nada mais significava do que a inclinação que alguém tem a reagir de modo “desviante” ou “tendencioso” diante de um determinado assunto.

Complexos”, como, por exemplo, o de Édipo e o parental (que funde pai e mãe em uma mesma imago), ou os complexos de  intrusão e desmame, nada mais são do que a capacidade que algumas palavras (chamadas por Lacan de significantes), possuem de atrair outras palavras, ao modo de uma cadeia repetitiva.

Durante os anos 1940-1950 o conceito foi assimilado ao desenvolvimento dos testes projetivos, inspirados na psicanálise, como o Rorschach e o Tematic Aperception Test (TAT). Neles existem certas reações às imagens apresentadas, como o choque dissociativo, que são genericamente indicativo de transtornos mais graves.

O problema de conceitos mais antigos, como os de “inconsciente”, “trauma” e “complexo”, é que eles se integraram de tal forma em nossa cultura que produzem uma espécie de falso entendimento naturalizado. Isso aconteceu com um dos primeiros processos de “gatilho” descobertos na história da psicologia chamado de “ataque histérico”, por Janet, Charcot e Freud.  Mas ao contrário de “gatilho”, que parece uma palavra moderna, séria e dotada de prestígio, “histérico” tornou-se uma palavra velha, inusual e associada com “algo que não existe, é puro fingimento, porque sua natureza é histérica”.

Observemos que o uso frequentemente desqualificativo da palavra “histeria” é uma maneira de calar ou desqualificar uma forma de sofrimento historicamente ligada a mulheres. Ocorre que um ataque histérico é justamente uma síndrome psicomotora, envolvendo alteração de consciência, causada por um significante específico, que se liga ao complexo patógeno do sujeito, desencadeando reações dissociativas e de despersonalização (semivoluntárias).

Também não é um acaso que a maior parte dos “gatilhos” se ligue justamente com as duas experiências, estudadas por Freud, como possuindo valor etiológico para a gênese de sintomas neuróticos: a sexualidade e a violência. Agora pense no revólver e em como a sexualidade “dispara” processos incontroláveis e ao mesmo tempo chama a representação social de violência.

“Gatilhos” devem ser conhecidos e respeitados por todos nós, mas acontece que sua natureza singular é tal que qualquer significante pode se tornar um “gatilho”, sendo impossível uma prevenção genérica contra eles. Por outro lado, a invocação do “gatilho” pode ser uma reação e um alerta difuso contra o excesso de pornografia e violência, corrente na web. Uma maneira de conter a crescente falta de educação e respeito nas trocas discursivas, tantas vezes mediadas pelo álibi irresponsável do pseudônimo.

Entre uma e outra posição gosto sempre de lembrar de quando era um jovem pai e decidi levar meu filho e meu sobrinho para ter contato direto com a alta cultura exposta ali no Museu de Arte de São Paulo, o Masp. Tentando salvá-los de coisas ignóbeis como “Os Padrinhos Mágicos”,  “A Vaca e o Frango” e “Johnny Bravo“, tive que enfiar minha sacola intelectual no saco diante das observações curiosas e críticas dos dois, do tipo: “tio, por que aquela mulher pelada aí está indo para aquele caldeirão quente cheio de diabos em volta?

Cultura é risco. Quem quiser uma vida sem risco volte para “Os Padrinhos Mágicos”. Mas ainda assim acho que aqueles santos em exposição erótica masoquista, aqueles retirantes famintos e aquelas cenas de guerra detonaram algum “gatilho” na cabeça dos dois.

REFERÊNCIAS

[1] COSER, Orlando (2010) As Metáforas Farmacoquímicas com as quais Vivemos. Rio de Janeiro: Garamont.

[2] SONTAG, Susan (1984) A doença como metáfora. Tradução Márcio Ramalho. Rio de Janeiro: Graal, 1984.

[3] Watters, Eaton (2010) Crazy Like Us: the globalization of American Psique. New York: Simon & Schuster, Inc.

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Quais são os impactos psíquicos das aulas online nos alunos e professores http://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br/2020/07/24/quais-sao-os-impactos-psiquicos-das-aulas-online-nos-alunos-e-professores/ http://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br/2020/07/24/quais-sao-os-impactos-psiquicos-das-aulas-online-nos-alunos-e-professores/#respond Fri, 24 Jul 2020 07:00:46 +0000 http://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br/?p=638

Anna Shvets/ Pexels

Findo o semestre no qual fomos jogados abruptamente no ensino online podemos agora começar um pequeno balanço desta experiência. Assim como o auxílio a renda revelou a existência de milhões de trabalhadores “invisíveis”, a passagem massiva dos alunos para aulas por meio de plataformas digitais, como o Zoom, Meets ou Teams, mostrou nosso etnocentrismo digital.

Se o etnocentrismo antropológico nos faz pensar que a nossa cultura é sempre a melhor medida padrão para o julgamento das outras, o etnocentrismo digital envolve o pressuposto de que todos os alunos têm condições ideais de pressão e temperatura para uso de recursos digitais. Como se todos que estão diante de uma tela dispusessem do mesmo tipo de máquina, com bandas de transmissão estáveis e velozes, com condições de ambiente, como luminosidade e isolamento acústico que temos, por exemplo, em um escritório padrão.

Foi, portanto, uma surpresa quando descobrimos que quase 10% dos alunos do curso de Psicologia da USP, tradicionalmente um dos maiores PIBs per capta desta universidade, simplesmente não tinha computador e um número ainda mais expressivo acessava a internet por meio de telefone celular.

Lembremos que uma das noções formadoras da escolarização no ocidente moderno foi justamente a disciplina que uniformizava a experiência de aprendizagem. Isso implicava mesmos horários de entrada e de saída, períodos regulares para recreio, avaliações referidas a uma tarefa comum, classes distribuídas por idade. Sair de casa e ir à escola tornou-se um gesto formativo de nossa separação subjetiva entre a vida privada, onde as regras variam segundo o capricho das famílias, e o espaço público, onde mesmas leis valem para todos. Tudo isso aprendemos indiretamente, como uma espécie de meta-aprendizagem, como conjunto de condições para que o saber se transmita segundo um certo regime de verdade e de autoridade.

Se a escola opera uma espécie de experiência de igualdade, por seu próprio dispositivo de funcionamento, as aulas online trazem à luz as idiossincrasias privadas. Podemos desligar a câmera e sair um pouco quando a aula está chata, podemos ser interrompidos por demandas familiares, acompanhados por animais de estimação, podemos nos vestir apenas para a parte superior dos corpos.

Por outro lado, o efeito câmera traz o desagradável efeito de que podemos estar sendo “olhados” por todos, o que não é o caso na situação presencial. Para adolescentes, isso pode ser terrivelmente invasivo. Estar diante de câmeras evoca em nós um espontâneo efeito de pose ou de auto-observação, neste momento da vida é importante poder “desaparecer”. Ainda que isso não seja exatamente possível, do ponto de vista objetivo, a disposição igualizante do formato carteiras atrás, professor(a) à frente, isto acaba se realizando subjetivamente, com raros, e às vezes temíveis, momentos de participação, quando “todos os olhares se voltam para você”.

Excetuando-se este ponto, as vantagens de conforto parecem superar amplamente os custos de deslocamentos e alocação de pessoas em uma sala. Contudo, neste ponto o testemunho foi unânime: aulas online são cansativas, não rendem, dificultam sustentar a atenção e parecem não “render” nem em termos cognitivos nem de memorização, como nas “aulas de verdade”.

Isso talvez possa ser pensado à luz da hipótese mais geral, que desenvolvi em meu último livro [1], de que o conhecimento é um caso particular de nossas relações de reconhecimento, ou seja, para que um determinado saber se torne significativo e possa ser propriamente incorporado, devemos contar com as relações de reconhecimento que subjazem a relação de aprendizagem.

Relações de reconhecimento envolvem tanto a maneira como somos lidos e posicionados pelo aparato escolar, de natureza institucional, quanto a forma como somos reconhecidos no interior da escola como comunidade. Reconhecer envolve tanto os meios que me ligam ao outro, a linguagem, os discursos e sua história, quanto os agentes e ainda os atos de reconhecimento que gradualmente sedimentam as regras pelas quais produzimos valor e sentido. A experiência de ensino online corrompe seriamente esta segunda dimensão da escola e sobrevaloriza a dimensão de conhecimento como uma experiência profundamente individual.

A linguagem digital envolve várias reduções. O outro se reduz a uma imagem bidimensional de 10 ou 20 centímetros, nossos atos de fala podem ser interrompidos por uma falha na transmissão ou na emissão, não conseguimos olhar exatamente nos olhos daquele com quem falamos (se assim o fizermos temos que olhar para a câmera e enquanto fazemos isso perdemos de vista, literalmente, a imagem do outro). Isso favorece que muitos alunos simplesmente abandonem a escola, ao passo que outros, com dificuldades em sustentar suas presenças e sua corporeidade em sala de aula, agora voltem a se interessar pela escola.

Do outro lado, professoras e professores têm diante de si um pesadelo didático. É como cantar sem “retorno”. Não sabemos se os alunos estão entendendo, gostando ou repudiando o que dizemos. Não temos como ajustar a velocidade de passagem de um tema para outro, nem como sentir a “temperatura” e os efeitos do que estamos dizendo para aquela turma, naquele dia, sob aquelas circunstâncias específicas do encontro. Estamos voando no escuro, ou melhor, no espelho, pois temos que nos contentar, muitas vezes em olhar para nossa própria imagem falante na tela.

Isso desperta um dos vícios narcísicos dos professores, a tendência a auto-observação exigente e cruel. Durante uma apresentação, todos nós temos que lidar ao mesmo tempo com a relação de transmissão de conteúdo, de apresentação dos tópicos e de articulação de ideias e com uma espécie de posição que nos sobrevoa em auto-observação e autoavaliação. É aquela voz que aparece quando, durante um jogo de tênis ou de futebol , erramos uma jogada e em vez de nos concentrarmos no lance seguinte desperdiçamos nossas forças ouvindo de nós mesmos coisas como: “sou um idiota mesmo”, “errei este lance fácil de novo”, “o que vão pensar de mim?” Isso é potencializado pela possibilidade real de que os pais “entrem na situação de aula” e vigiem o trabalho dos professores. Tudo isso converge para que a avaliação da situação concorra com o próprio acontecimento da situação, mais ou menos como quando vamos a um show ou visitamos um museu e passamos o tempo todo atrás da tela.

Ter que acompanhar-se falando ou em voo cego telefônico ou às dezenas de fotinhos de alunos é uma alternativa do tipo quanto pior, pior. Mesmo a conversa paralela, que tantas vezes perturba a aula, é uma espécie de feedback sobre a recepção de nossa mensagem. Assim como na clínica o silêncio do outro lado pode ser percebido não apenas como desatenção, mas como ausência potencial.

O contexto de avaliação, tão importante em vários momentos, também está sujeito a variações importantes, perguntas difíceis podem ser respondidas com um celular. Já se tem notícia de um campeão de maratona de matemática, produto de uma banca doméstica de adultos engenheiros e estatísticos. Ou seja, a partilha entre o público e o privado que determina o espaço escolar, às vezes com os muros da escola nos protegendo da intrusão da indústria cultural e de interesses que aumentam a desvantagem entre aqueles que dispõem de massivos recursos culturais de apoio e os que lutam por mesmas oportunidades.

Estamos aqui diante do problema da distribuição desigual do acesso ao universo digital e à tecnologia em geral, como ponto sensível para o aumento das dificuldades educativas no Brasil. Esta questão se tornará mais aguda com a chegada dos exames para ingresso nas universidades.  Se o direito à educação é uma prerrogativa geral de redução da desigualdade, isso não replica a diferença de oportunidades de acesso a tecnologia. Quando falamos em acesso a livros, cadernos e material gráfico, isso significa algo bastante diferente de quando se dispõe de banda larga, memória de armazenamento, máquinas potentes e cursos paralelos de informática. O sentimento de injustiça, derivado da nebulosa sensação de que “estamos perdendo alguma coisa” pode concorrer aqui para a progressão de nossa ansiedade, que já não é pequena.

REFERÊNCIA

[1] Dunker, C.I.L. (2020) Paixão da Ignorância. São Paulo: Contracorrente.

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Como as famílias de “Dark” representam as diferentes teorias do tempo? http://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br/2020/07/17/como-as-familias-de-dark-representam-as-diferentes-teorias-do-tempo/ http://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br/2020/07/17/como-as-familias-de-dark-representam-as-diferentes-teorias-do-tempo/#respond Fri, 17 Jul 2020 07:00:50 +0000 http://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br/?p=670

Divulgação

Para reduzir o spoiler, proponho aqui uma espécie de mapa para ler “Dark” como uma trama entre quatro teorias do tempo, cada qual representada por uma família ao longo de suas gerações.

“Dark” (2017-2020), criada por Baran bo Odar e Jantje Friese, derrotou “Black Mirror” e “Stranger Things”, como melhor série de todos os tempos. A trama se passa na pequena cidade de Winden, no interior da Alemanha, incrustrada no que se presume ser a Floresta Negra, lugar mágico de onde se passam os contos infantis dos irmãos Grimm. A fictícia Winden é assolada pela desaparição de crianças que se repete a cada 33 anos. Nesta mistura de ficção científica e suspense podemos acompanhar o confronto entre quatro teorias sobre o tempo, cada qual representada por uma família, cada qual influenciada por uma espécie de mentor que, mais ou menos como os deuses gregos, interferem, mas não determinam completamente, o destino dos humanos. Uma caverna labiríntica e escura, no meio da qual há um portal de ferro, com a inscrição “Sic Mundus  criatus Est” (“E assim o mundo foi criado”) é o meio de conexão entre o ano de 2019 para os anos de 1986 e 1953, (depois ampliado para 2052 e 1921).

Tiedmann

A família Tiedemann, que administra a usina nuclear, representa o tempo linear, com começo no gênesis e fim no apocalipse, cuja data, segundo a série, é 27 de junho e 2020.  A seta do tempo os torna obcecados com o tema das origens e pela restauração da ordem pela qual as coisas devem prosseguir, segundo a luta permanente entre luz e sombras, entre o bem e o mal. O misterioso pastor Noah comanda esta falange, cooptando crianças e enviando-as para diferentes posições temporais com o objetivo de que as coisas aconteçam exatamente como está previsto no livro.

Noah tem a tábua esmeralda, de Hermes Trismegisto, texto originário da alquimia, onde se encontra a expressão “Sic Mundus“, tatuada em suas costas. Ele tem contra si Regina e Claudia Tiedemann que tentam bloquear seus planos, como uma espécie de contraface benigna do mesmo tempo retilíneo. A origem do tempo remete ao criador, assim como o fim dos tempos remeterá ao juízo final, o que se apresenta materialmente realizado por meio de um desastre atômico.

Kahnwald

A família Kahnwald parece representar o tempo circular tal como ele aparece nas narrativas míticas. Ao contrário das chamadas religiões históricas, que introduzem uma perspectiva de avanço temporal, os mitos orais se adaptam e se transformam circularmente sem que percebamos vestígios desta mudança.

Os mitos falam dos tempos originários e são transmitidos como ponto fora do tempo. Nesta medida, Jonas Kahnwald tenta reparar as situações ao longo do tempo para que tudo volte a se encaixar e as crianças sejam devolvidas aos seus próprios tempos. Que as estações do ano voltem a se suceder como sempre foram e as relações familiares continuem a se reproduzir. Ele representa a firme convicção de que seria possível voltar à posição inicial e restaurar a harmonia e a alternância natural das coisas como repetição eterna de ciclos de destruição e restauração. Talvez o misterioso Adam seja o mentor final deste eterno retorno.

Doppler

A família Doppler está associada à combinação entre a temporalidade circular do mito e a orientação progressiva e irreversível da reta cronológica. No momento em que o círculo está prestes a se fechar acontece uma pequena torção, um desencaixe que faz com que o círculo se desdobre em um espiral, concêntrica ou excêntrica, conforme o círculo subsequente seja menor ou maior do que o anterior.

Doppler está associado com as encruzilhadas nas quais alguém pode encontrar consigo mesmo em outra versão. Mais ou menos como no efeito Doppler, em física, onde a percepção sonora de um objeto em movimento varia conforme a posição em relação ao observador. É por isso que sentimos que o barulho de uma ambulância que se aproxima é mais agudo do que quando ela se afasta de nós. É o caso de Helge Doppler que está constantemente tentando negar o progresso e as circularidade do tempo, ora obedecendo e ora se insurgindo contra Noah, esquecendo de sua própria posição relativa.

Os atos de Helge, para contrariar os planos da seita “Sic Mundus”, acabam por tornar possível a sua própria existência. Temos então um tratamento do problema do tempo por meio da contradição. Por outro lado, Charlotte Doppler parece ser a reverberação desta luta dialética entre o círculo indeterminado e sem sentido do mito e a reta da finalidade que orienta a experiência humana para algum objetivo, propósito ou finalidade.

Nielsen

Finalmente a família Nielsen representa os desaparecidos de uma época que surgem em outra, por meio de um túnel de minhoca. Mikkel Nielsen, Mads Nielsen, assim como Ulrich Nielsen vivem uma situação de circularidade quântica, por meio da qual um objeto enviado do futuro muda o passado, assim como algo enviado do passado altera o futuro. Eles estão presos neste loop temporal que se tornou possível graças à máquina de viajar no tempo construída por H.G. Tannhaus, o relojoeiro e autor do livro “Uma Viagem pelo Tempo”. O livro é uma espécie de gato de Schrödinger, uma anomalia temporal que só existe para o que o suposto autor possa ter as informações necessárias para publicá-lo, tendo sido enviado do futuro para o passado.

Estas quatro teorias conflitantes do tempo parecem relacionar-se ao nome escolhido para a cidade fictícia onde a aventura acontece. Winden, em alemão remete ao substantivo Wind, ou seja, vento. O vento indica literalmente o sentido para onde algo vai e metaforicamente à ideia de mudança, imprevisibilidade, incerteza. Por outro lado, winden significa também torção, virada e retorno.

O sentido da vida

Ora, o sentido da vida pode ser lido tanto em termos de sua direção rumo à morte, de modo inexorável e irreversível, assim como a repetição do ciclo de renovação circular por meio do qual algumas pessoas nascem enquanto outras morrem. Contudo, há uma cidade real na província de Baden, na Alemanha, chamada Winden, e ela se localiza nas cercanias da Floresta Negra (Schwarzwald), a alguns quilômetros do grande colisor de Hádrons, o acelerador de partículas localizado na fronteira fraco-suíça.

A usina atômica construída em 1953, na Floresta Negra, onde Winden está incrustrada, vive o perigo real de um acidente nuclear,  como o que aconteceu em 1986 em Chernobyl, gerando o vento da morte, uma nuvem de radioatividde que afetou quase toda Europa. Lembremos que 1953, 1986 e 2019 são as datas cruciais da série. Aliás “escuro” em inglês, “dark”, remete ao negro Schwarz, em alemão. Mas há uma quarta acepção possível que remonta a um cognato de winden, ou seja, Verschwinden, que quer dizer “desaparecer”, “sumir”, como as crianças de Winden ou as crianças levadas (winden) pelo flautista de Hamelin, dos irmãos Grimm. Desta forma, se poderia dizer sinteticamente, que as crianças desaparecidas (Verschwinden), foram levadas da cidade real e mítica, de Winden para um passeio em torção espiral, do futuro ao passado (winden), de tal forma a revelar o sentido, circular ou retilíneo (winden) da vida e de nossa existência.

Heidegger e Tiedemann

Se você ainda não está satisfeito com isso, considere que o filósofo Martin Heidegger (1889-1976) morava em uma cabana na Floresta Negra. A saída do túnel do tempo posicionava-se entre uma cabana e um abrigo subterrâneo, talvez um bunker da Segunda Guerra Mundial ou um abrigo antiatômico.

Heidegger já foi usado para defender uma espécie de retorno ao tempo originário da natureza, bem como criticado por sua adesão ao nazismo. Ele tinha sido seminarista na juventude (como Noah) e publicou sua obra máxima intitulada de “Ser e Tempo” (1927).  Nela a importância do ser-para-a-morte e da existência como tempo é discutida em um confronto entre circularidade e finitude da existência.

Heidegger retoma as indagações inaugurais de Santo Agostinho sobre o tempo, como intervalo entre o que “já não é” e o que “ainda não foi”. Para o mestre de Hannah Arendt e Hans Jonas, assim como para a família Tiedemann, é necessário uma ato ou decisão para produzir o presente, pois ele não é mera passagem contínua do tempo. Memória e antecipação formam assim uma seta que é ao mesmo tempo progressiva e regressiva, luz e sombra, progresso e barbárie, a luta do bem com o mal.

Nietzsche e Kahnwald

Heidegger criticava a filosofia de Nietzsche (1844-1900), que  faleceu em Weimar, perto de Winden, depois de escrever “Para Além do Bem e do Mal (1886), livro onde apresentou sua teoria do eterno retorno. Para ele nossa existência ocorre um número infinito de vezes e se define por um número infinito de recorrências cíclicas da mesma constelação de mundo. Se para Santo Agostinho e Heidegger o tempo é uma reta, para Nietzsche ele é uma estrutura circular.

Nietzsche era um estudioso dos mitos e tragédias gregas e percebeu que o que caracteriza seus heróis é que quanto mais eles tentam agir para modificar seu destino, mais eles concorrem para realizá-lo. A repetição que se renova de forma tão mais impiedosa quanto mais queremos fugir dela. Parece ser este exatamente a saga dos heróis da família Kahnwald, ou seja, da família do barco (Kahn) da floresta (Wald).

Na narrativa bíblica Jonas é enviado a Niníve para fazer sua população se arrepender antes do castigo divino. No caminho ele é envolvido por uma tempestade e é engolido por um peixe gigante que o vomita três dias e noites depois. Sua viagem recapitula a saga de heróis como o sumério Gilgamesh e os gregos Jasão e Ulisses, e também para uma grande teoria trágica do tempo, expressa nas obras de Franz Kafka (1883-1924), outro autor que trafegou nas cercanias da Schwartzwald.

Hegel e Doppler

Nietzsche, por sua vez, se opunha à filosofia de Hegel (1770-1831) que afirmava a existência de múltiplas experiências do tempo. Para o autor da “Fenomenologia do Espírito” (1807), conhecido como inventor da filosofia da história, o tempo tem uma estrutura em espiral por meio do qual cada acontecimento cria, retrospectivamente, as condições de sua própria justificação e existência.

Cada um vive em inúmeras temporalidades, todas elas realizando cadeias de determinação e contingência. Algumas delas se efetivam no que chamamos de presente, mas as outras versões irrealizadas do tempo do espírito permanecem latentes, aspirando por se tornar realidade conforme a disposição exata da contradição que as define.

Hegel foi o primeiro a perceber que o tempo e os atos do espírito se movimentam graças à força criativa da negação conservadora, também chamada de dialética. Portanto, não parece um acaso que o personagem que luta contra Adam e Noah, chame-se justamente Helge Doppler, um anagrama óbvio de … Hegel Doppler (o duplo de Hegel).

Einstein, Bohr e Nielsen

Resta-nos a família dos prisioneiros do tempo, ou seja, os Nielsen. A referência aqui parece ser dupla, ao radical que indica ninguém ou nada (nie) e a figura do grande físico e adversário de Einstein (1879-1955), quando se tratava da questão do determinismo, ou seja, Niels Bohr (1888-1965).

Esta concepção filosófico-científica envolve a controvérsia entre a física da relatividade e a mecânica quântica, no qual se mostrou que a seta do tempo não é irreversível. O tempo é reversível e até mesmo inversível em função da velocidade e da posição do observador.

Aqui o tempo tem a estrutura de um buraco de minhoca que pode voltar e engolir a si mesmo. Essa teoria aparece no livro de H.G. Tanhaus. Em “Dark” ele é o construtor da máquina que permite viajar no tempo. Mas ele só pode construí-la porque um viajante (Ulrich Nielsen) deixou um telefone celular que ele havia trazido do futuro para que ele pudesse inventá-la.

H.G. é uma referência a H.G. Wells que em 1895 publicou o romance “A Máquina do Tempo. Tanhaus é uma alusão ao protagonista da ópera de Wagner, chamada Tannhäuser, onde o herói derrota o conde da Turíngia no concurso sobre o que é o amor.

Nietzsche era amigo e admirador de Richard Wagner, até que este se converte ao cristianismo. Em seu último livro antes de enlouquecer, “O Caso Wagner” (1895), Nietzsche rompe com o compositor que teria regredido para uma mítica da valorização das origens e sua confiança no progresso.

No cinema, os portões de Tannhäuser são citados no monólogo proferido pelo replicante representado por Rutger Hauer em “Blade Runner: O Caçador de Androides, filme de Ridley Scott de 1982, inspirado no conto de Philip K. Dick:

Eu vi coisas que vocês não imaginariam. Naves de ataque em chamas na órbita de Órion. Eu vi raios-c brilharem na escuridão próximos ao Portal de Tannhäuser. Todos estes momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer.”

Na iminência de seu próprio fim, a máquina-replicante, com hora pré-programada para ser desativada, se humaniza por meio de um ato hegeliano. Movimento imprevisível e inesperado pelo qual ele salva a vida daquele que o persegue (Harrison Ford) e transmite sua experiência, prestes a se dissolver, no ciclo da repetição das gotas da chuva. E por este ato ele ganha o direito e o reconhecimento que o tornam alguém que tem direito a morrer e não apenas uma máquina que quebra e deixa de funcionar.

Ao contrário de sua própria declaração suas palavras se imortalizam na lembrança de todos nós e permanecem como testemunho vivo que o que torna alguém humano é sua capacidade de negar sua determinação “maquínica”. Além de repetir o eterno retorno do mesmo, o replicante introduz na repetição uma pequena torção, uma pequena diferença dialética, que faz toda a diferença.

Tudo junto com uma nota trágica

A teoria do buraco negro, indutor das viagens através do tempo, que se materializa em “Dark”, incorpora a crítica heideggeriana da técnica, a suspeita nietzscheana sobre a razão e o espírito de contradição hegeliano, mas agrega a isso uma nova nota trágica.

Contra aqueles que veem na viagens no tempo uma forma de consertar os erros do mundo, até mesmo prevenir crimes, como em “Minority Report“, de Steven Spielberg, “Dark” recoloca o sem-sentido da tecnologia em outra chave. Tudo se passa como se nos futuros quânticos de Nielsen pudéssemos retroceder para a tragédia circular de Kafka, combinando o eterno retorno nietzscheano, o ser-para-a-morte de Heidegger e o desfazimento do acontecido de Hegel em um mesmo processo.

Na matéria de jornal que noticia da prisão de Ulrich Nielsen, que volta no tempo em busca de seu filho e de seu irmão, que tenta assassinar Helge Doppler, imaginando que ele é o causador das abduções das crianças, sendo preso por Egon Tiedemann, há passagens inteiras dos livros de Kafka como “A Metamorfose“, “O Processo” e “O Castelo“.

Todos com razão, em seu próprio tempo, em seu próprio acontecimento … infinito.

* Diferentemente do que estava escrito no texto, Gilgamesh é sumério, e não persa. O texto foi corrigido.

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Por que a web ataca atriz de Glee pelo desaparecimento de Naya Rivera? http://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br/2020/07/11/por-que-a-web-ataca-atriz-de-glee-pelo-desaparecimento-de-naya-rivera/ http://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br/2020/07/11/por-que-a-web-ataca-atriz-de-glee-pelo-desaparecimento-de-naya-rivera/#respond Sat, 11 Jul 2020 15:00:13 +0000 http://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br/?p=648

As atrizes Naya Rivera (esq.) e Lea Michele, que participaram da série “Glee” (David Livingston/Getty Images e Reprodução/ Instagram)

A atriz e cantora Naya Rivera, que viveu a personagem Santana Lopez na série “Glee”, encontra-se desaparecida depois que o barco que ela pilotava em um lago no sul da Califórnia, foi achado à deriva, com seu filho de quatro anos, vestindo um colete salva-vidas. Logo em seguida Lea Michele, atriz que representava uma das antagonistas de Naya na série, passou a ser violentamente atacada nas redes sociais. Aparentemente a misteriosa desaparição de Naya, na vida real, só podia ter uma culpada, a sua adversária na vida ficcional de Glee. Os internautas não repeitaram nem mesmo o fato de que a  atriz está grávida, “cobrando” uma resposta, ou uma declaração pública de que ela de fato não teria raptado ou tramado do desaparecimento de Naya. Como se tivessem uma espécie de direito adquirido como vingança pelos infortúnios e pela inveja que Lea sentia pelo sucesso de Naya… como personagem da série.

O episódio pode ser tomado com um caso modelo da somatória de equívocos, enganos e confusões de sentimentos que só uma rede social pode produzir.  Tudo se passa como se tivéssemos “cancelado” a diferença entre personagem e atriz. A fronteira entre vida real e ficção se apaga. Diante da falta de sentido de certos acontecimentos, como a desaparição inexplicável de uma jovem e bela atriz de sucesso, emerge uma narrativa simples que torna tudo isso pleno de sentido. Um ótimo exemplo de como nosso desejo de punição e castigo, nossa ânsia de produzir culpados, se amplifica nas redes sociais.

Lea parece ser o lugar certo para depositar nossa raiva. Ela foi acusada de praticar maus-tratos e racismo no set de filmagem da série. Seus requintes de crueldade, denunciados por suas colegas de trabalho, atingiam particularmente jovens atrizes iniciantes.  Provavelmente a comoção e a compaixão esperada para o caso produziu o que em inglês se chama “mixed feelings”, uma mistura de sentimentos que se aplica quando experimentamos afetos opostos em relação a uma mesma pessoa ou situação.

Aqueles que antes vibravam com o cancelamento da malvada Lea, agora duplicam sua satisfação em uma espécie de cancelamento do cancelamento.  Como se os que torceram por Naya contra Lea sofressem o efeito rebote de inversão da vingança. Como se o fato de que algo ruim acontecer a uma pessoa-personagem boa exigisse uma especie de correção da realidade. essa é uma forma de resolver afetos misturados, repurificando-os em uma nova usinagem de culpa e raiva. 

O processo de duplo cancelamento ou de reciclagem de uma figura cancelada para explicar o inexplicável  pode ser entendido como um dos efeitos da cultura da culpa. Todo sujeito dominado pela culpa é também um dependente do prazer purificador que ela traz consigo. Freud fala em três movimentos de nosso supereu, este nosso gerente geral interno da culpa: observar, julgar e punir. Essa dependência baseia-se no fato crescente de que se não encontro culpados nos outros a culpa voltará para mim.  Mas o supereu não age como um juiz imparcial que quer ver o equilíbrio restabelecido. Ele é muito melhor representado por um juiz punitivo, que goza e vibra quando executa suas sentenças, extraindo um prazer sádico, resguardando-se disso pela desculpa que está operando dentro da lei.

Muitas pessoas, e o funcionamento em estado de  massa digital parece nos inclinar para isso, podem se tornar dependentes deste prazer baseado no alívio da culpa. Este prazer pode ser chamado também de gozo, porque não envolve a própria corporeidade. Ou seja, se o prazer é de cada um o gozo passa sempre pela suposição que fazemos sobre a satisfação alheia. É porque a massa digital especula que Lea está gozando com a desaparição de Naya, que ela deve ser punida. Na verdade a desaparição de Naya faz cócegas em nosso superego, afinal como pode haver “crime” sem “culpado”?

Exemplo sumário. Uma pessoa muito pudica reprova o uso de pornografia em nome da moral e dos bons costumes. Outra pessoa gosta de pornografia e gostaria de vê-la permitida e amplamente divulgada, porque isso facilitaria sua forma preferencial de prazer. Quando se decreta a lei que autoriza a pornografia acontecem duas coisas na segunda pessoa: ela goza em função dos prazeres futuros (que ela ainda não teve) e ela goza porque seu adversário estará se contorcendo ao imaginar o prazer que o pornógrafo está tendo (gozando dela). 

A loucura humana não tem que ver apenas com prazeres permitidos e interditados, mas com o fato de que além do prazer que podemos extrair de nossos próprios limites e condições temos que lidar com o gozo, que sempre passa pelo outro, e pelo prazer que “nós” supomos que “ele” ou “eles” estão experimentando. É por isso que é tão difícil, para muitos, reconhecer erros e voltar atrás. Quando fazemos isso supomos que estamos “dando o braço a torcer” e que o outro vai gozar com isso.  

Conclusão: se a gramática da culpa comanda nossas relações com o outro e com o mundo, quando uma desgraça acontece alguém tem que ser punido (senão seremos nós mesmos). Quando temos pensamentos de vingança, ou o mero desejo de que alguém que detestamos se dê mal devemos estar preparados para o efeito rebote de retorno do cancelado. Daí sentimos culpa onde ela é inexplicável pois não agimos de forma a causar o mal do outro. É nesta hora que o comportamento de massa precisa de uma nova purificação. É preciso inverter a culpa em satisfação gozosa achando um novo culpado.O processo é semelhante a dependência química, na qual precisamos cada vez de doses mais altas para obter os mesmos resultados de alívio e purificação.

E de cancelamento em cancelamento vamos nos achando cada vez mais puros, quando o que acontece é que vamos nos tornando cada vez mais pobres … de espírito.

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Como reconhecer uma fake news científica? Veja este exemplo na psicologia http://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br/2020/07/03/como-reconhecer-uma-fake-news-cientifica-veja-este-exemplo-na-psicologia/ http://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br/2020/07/03/como-reconhecer-uma-fake-news-cientifica-veja-este-exemplo-na-psicologia/#respond Fri, 03 Jul 2020 07:00:46 +0000 http://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br/?p=628

Sigmund Freud (Pixabay)

Neste momento em que o Congresso discute medidas para conter a disseminação de fake news e que a pandemia de coronavírus nos faz acompanhar, cada vez mais de perto, o progresso da pesquisa com vacinas e antídotos, torna-se crucial reconhecer e valorizar a boa divulgação científica.

Vários fatores concorreram para a indisposição social com as universidades brasileiras e sua demonização política, junto com as artes e a educação em geral. Entre eles está a crônica dificuldade em esclarecer apropriadamente a importância e a complexidade do processo de produção do conhecimento científico.

O negacionismo científico, porta de entrada para a intolerância religiosa, o dogmatismo cultural e o fascismo político, fermenta a sede de certezas. Nem sempre a ciência tem respostas para nossas incertezas. Isso cria a tentação psíquica para aderirmos a enunciados fáceis e crenças resseguradoras. Isso tende a identificar a ciência, como forma de saber, com a tecnologia, como produção de objetos e processos derivados deste saber.

Saber como funciona o SARS-CoV-2 é diferente de produzir e distribuir vacinas contra a covid-19, que por sua vez é distinto de tratar pacientes em um hospital, ou com a política pública de saúde. Apesar das diferenças, nos referimos a tudo isso como ciência. Apesar da complexidade, sabemos que a divulgação dos benefícios da cloroquina, o anúncio de fórmulas mágicas de cura e proteção são fake news científicos.

Fake news no campo da ciência podem ser definidas como notícias que abordam problemas de ciência com imperícia na apresentação dos fatos, imprudência quanto ao impacto junto ao público ou negligência na tradução da complexidade da matéria tratada.

O contexto da pós-verdade[1] nem sempre é formado por enunciados individualmente falsos e contrariáveis com a experiência por um sistema de checagem. Muitas vezes afirmações verdadeiras ou plausíveis conduzem a conclusões falsas ou mal-intencionadas.

Nosso momento pede urgentemente mais e melhor divulgação científica, mas isso não será obtido tomando a ciência como a única forma de conhecimento válida, útil e pertinente ou misturando tecnologia, metodologia e teoria da ciência com marketing e moral.

O desafio não é pequeno porque a própria definição de ciência sofre severas flutuações, conforme consideremos sua história, os conceitos teóricos das diferentes disciplinas, os objetos específicos, os métodos de investigação, as práticas associadas ou as tecnologias derivadas.

Em vez de expor um conjunto de considerações sobre a ciência em geral, tentando homogenizar critérios relativamente específicos de cada ciência, vou discutir um caso modelo de fake news científica, em uma área sabidamente instável do ponto de vista epistemológico, ou seja, a Psicologia. Trata-se de uma matéria publicada pelo site de divulgação científica “Questão de Ciência“, chamado “A Psicanálise e o infindável ciclo pseudocientífico da confirmação, cujo autor, Ronaldo Pilati, professor em Psicologia Social na UNB, possui uma carreira destacada das ciências cognitivas, mas que, neste caso, aventurou-se a tecer críticas contra a psicanálise, matéria na qual não possui nenhum trabalho a respeito. O texto consegue reunir tamanho número de falácias, imprecisões e equívocos que se se presta a exemplificar paradigmaticamente o que deve ser evitado em termos de divulgação científica.

1. Excesso de autoridade

Fake news tendem a denunciar autoridades constituídas e infiltrar um sentimento de que estamos sendo enganados. Afinal esta é a maneira mais simples de começar a enganar o outro, ou seja, praticando a verdade que está por vir. Isso acontece no caso do artigo de Ronaldo Pilati sobre a Psicanálise. Depois de referir-se a sua forte representação social na mídia, no imaginário popular e no senso comum ele declara: “não se confunda, o aspecto mais importante que a Psicologia partilha com a psicanálise é a história”.

Observe o uso desigual da letra maiúscula para “Psicologia” e minúscula para “psicanálise”. Observe a ideia de que a psicanálise seria algo do passado e histórico. Observe como aquele que quer te enganar começa dizendo que você está sendo enganado. A afirmação é objetivamente falsa. A maior parte dos cursos de Psicologia compreende muitas disciplinas de Psicanálise, quer nos cursos de graduação, quer nos manuais introdutórios mais lidos, quer na pós-graduação. Há vários grupos de pesquisa ligados à psicanálise admitidos pela Associação Nacional de Pós-Graduação em Psicologia (Anpepp).

Mas isso são testemunhos institucionais, na verdade, a tese subjacente é que eles todos possuem uma autoridade indevida. O mais grave neste caso é que o seu autor é presidente da Sociedade Brasileira de Psicologia, portanto, deveria representar todos os psicólogos, inclusive os psicanalistas que frequentam esta sociedade e não apenas os que seguem sua abordagem. Afirmar, pejorativamente, que a psicanálise é uma pseudociência abusa deste poder representativo e deveria levar à sua destituição imediata.

2. Perguntas simplificadoras e suas respostas desencaminhantes

Depois de denunciar as fake news científicas, costumam fazer perguntas simplificadoras do tipo “a psicanálise é uma ciência?”. Ignorando a grande variedade de acepções do que significa “psicanálise” (e também “ciência”), fixando-a aos escritos de Freud (como se a pesquisa psicanalítica não tivesse avançado desde então), desfazendo a hipótese de que ela poderia ser, não uma, mas várias ciências combinadas e desinformando o leitor de que a psicanálise é tanto um método de tratamento clínico, quanto um método de pesquisa e uma teoria (a pergunta sobre a cientificidade é diferente em cada caso), o autor não ajuda o leitor a tornar mais complexa a pergunta.

Na verdade, você nunca teria feito esta pergunta se alguém não tivesse desmascarado as coisas para você. Afinal, quando foi que você perguntou se o seu médico é “científico” ou não? Quando foi que você se inquietou se seu fonoaudiólogo, nutricionista ou mesmo o professor de seus filhos é “científico” ou não?

Em geral, confiamos que alguém que se dedicou a uma formação específica, passando por uma universidade ou por qualificações adquiridas para uma prática qualquer, segue sendo uma solução razoável, até que algo nos pareça incorreto ou injustificável.

Perguntas simplificadoras rebaixarão nosso nível de exigência cognitiva, assim como elevam nossa desconfiança. Afinal, como você pode provar que o ser humano realmente pisou na Lua? Quais as reais provas que está havendo um derretimento da calota polar? Como colocou Atila Iamarino, a crença na ciência não aumenta com validação racional de evidências, mas com uma mudança cultural que estabeleça mais e melhores posturas críticas.

WikiImages/ Pixabay

3. Declarações amplas, contundentes … e furadas

Perguntas simplificadoras costumam induzir falsas conclusões ou certezas discutíveis a partir de premissas corretas. No caso da fake news em questão isso remonta ao argumento apresentado por Karl Popper nos anos 1940, de que a psicanálise é uma pseudociência porque seus conceitos não são falseáveis. Karl Popper é um grande teórico da ciência, mas muitos duvidariam que ele é “o maior filósofo do século XX”, como o texto declara.

Psicanálise, Psicologia Individual (Adler) e psicologias psicodinâmicas são reunidas em uma coisa só. Popper foi sucedido por inúmeros reparos, críticas e objeções. Mesmo assim, o fato de Freud pertencer “apenas” a história da psicologia, não é suficiente para dizer que Popper, que lhe foi contemporâneo, pertence “apenas” à história da epistemologia.

Oseroff mostrou que a popularização da tese de Popper propagou três mitos pseudocientíficos: o mito da demarcação extra-social da fronteira entre ciência e não ciência (enfrentado por T. Kuhn), o mito de que apenas teorias individuais são falseáveis (a teoria da evolução de Darwin não seria falseável) e o mito de que há apenas um critério de demarcação (há em Popper também o critério da previsibilidade).

A crítica de Popper foi refeita, em melhores bases, por Grünbaum em 1984 e respondida com dados experimentais por Shevrin, mostrando que sim, é possível falsear a hipótese do conflito inconsciente, particularmente em sintomas fóbicos [2]. Portanto, a afirmação de que “a atitude não falseacionista continua sendo replicada pelos psicanalistas da atualidade” é desatualizada, genérica e falsa, apesar de partir de uma premissa verdadeira.

4. Retratos, caricaturas e espantalhos

Fake news movem-se em torno da produção de inimigos, denúncias e conspirações. Por isso é importante prestar a atenção a parcimônia com a qual se caracteriza posições oponentes.

A estratégia da falsa divulgação científica força o retrato com traços indesejáveis e fixa uma imagem representativa: “aquilo que se sabia na época de Freud é muito diferente do que se sabe hoje”, nada da psicanálise foi confirmado pelas modernas neurociências (ignorando, por exemplo, o trabalho recente de Sidarta Ribeiro [3]). Com isso nos resta recusar e excluir a psicanálise do debate científico e das práticas psicoterápicas. Isso não contribui para que ela apure seus próprios critérios de cientificidade, esclareça pontos de obscuridade de seus conceitos ou critique seus procedimentos clínicos. A solução se dá por eliminação do oponente.

Pilati ignora soberbamente um século de pesquisas psicanalíticas, invalida autores que renovaram suas concepções. Como se a psicanálise não tivesse buscado apoio na psicologia do desenvolvimento, na antropologia, nas ciências da linguagem, nas matemáticas e mais recentemente nas neurociências. Como se a psicanálise não tivesse se interconectado, para o bem e para o mal, com inúmeras teorias psicológicas, até mesmo cognitivistas e comportamentalistas, como parece ser a adesão do autor do texto.

O retrato sugerido por frases como “o autoalijamento psicanalítico do pensamento científico” desconhece a vasta bibliografia sobre epistemologia da psicanálise. A afirmação de que a “psicanálise é uma pseudociência como a homeopatia, a cromoterapia, as práticas complementares ou integrativas” opera por desqualificação e agrupamento de preconceitos. As revistas, os congressos, as teses, as associações de psicanálise são “apenas” imitações da verdadeira ciência.

Mais uma vez o espantalho criado para retratar a psicanálise se ajusta muito melhor ao próprio texto que a denuncia, como uma falsa divulgação científica.

5. A força do veículo não garante a qualidade do motorista

Fake news científicas podem acontecer em reputados veículos de imprensa. Neste caso um traço típico é a sua republicação, repetindo o conteúdo com pequenas variações de forma. É o caso da matéria de Pilati cuja mensagem se repete há anos, tornando-se parte do conhecido “Funeral Eterno de Freud“. Veículos importantes como a Time, nos anos 1990, e agora o site “Questão de Ciência”, que publica matérias pertinentes em biologia, medicina e ambientalismo, estão sujeitos a isso.

Tais revistas ou editorias enfrentam o desafio de englobar e cobrir o conjunto mais extenso das ciências, em particular das ciências humanas. Nem sempre a notícia que acolhe todos os lados, enviando o leitor para um material bibliográfico espinhoso e reduzindo o impacto pirotécnico das conclusões será uma pauta atraente.

É possível que muitos elementos da psicanálise e boa parte de suas estratégias de fundamentação sejam provenientes da filosofia e não da ciência. Talvez sua existência dependa de certos paradoxos da ciência, ou de sua peculiaridade metodológica de se interessar por sujeitos singulares, e não apenas por sujeitos-tipos. Mas disso não decorre que ela não se esforce por justificar seus conceitos e procedimentos de forma pública, em linguagem crítica e laica, debatendo com instituições reguladoras, em acordo com os princípios da razão suficiente, no quadro de uma ética emancipatória. Afinal, são destas propriedades, inerentes ao modo como a ciência é feita, que ela extrai sua autoridade sobre nós.

Mas a autoridade que se quer expressar aqui é mais punitiva e securitária: “A população deve ser informada de que, quando alguém opta por uma psicoterapia com estas características, a opção feita é por algo que não tem evidências de efetividade a apresentar, ou seja, se você quer arriscar, tome o risco por si mesmo, porque a ciência não garante.

Anos atrás a maior sociedade científica de psicologia dos EUA refez os dez principais estudos experimentais de sua área e para escândalo geral, mais da metade deles não resistiu ao critério da replicabilidade, ou seja, usando-se os mesmos métodos e variáveis os resultados eram diferentes.

Isso significa que a psicologia experimental não é ciência? Ela está enganando a todos e superestimando sua autoridade? As terapias que decorrem desta perspectiva são uma ofensa à saúde das populações? Acho que não. A população deveria ser informada sim, mas de que existem evidências científicas da eficácia e da eficiência clínica da psicanálise e aqui estão algumas das mais conhecidas: 

  • Leichsenring, F, Kruse, J, Rabung, S (2012) Efficacy of Psychodynamic Psychotherapy in Specific Mental Disorders: An Update. In: P Luyten, LC Mayes, P Fonagy, M Target, SJ Blatt. Handbook of Contemporary Psychodynamic Approaches to Psychopathology. New York: Guilford Press.
  • Rabung, S, Leichsenring, F (2012) Effectiveness of Long-term Psychodynamic Psychotherapy: First Meta-analytic Evidence and its Discussion. In: R Levy, SJ Ablon, H Kächele (Eds.). Psychodynamic Psychotherapy Research. Evidence-Based Practice and Practice-Based Evidence. New York: Humana Press, 27-49.
  • Doidge N. Empirical evidence for the efficacy of psychoanalytic psychotherapies and psychoanalysis: an overview. Psychoanal Inq1997;102-150
  • Fonagy P, Target M. Predictors of outcome in child psychoanalysis: a retrospective study of 763 cases at the Anna Freud Centre. J Am Psychoanal Assoc1996; 44:27-77.

Sr. Ronaldo, volte para seu condomínio burocrático e pare de espalhar Fake News científicas. Estude um pouco mais de psicanálise e faça uma crítica consistente e atualizada. A crítica bem feita faz todos avançarem na ciência e fora dela também. Evite repetir matérias sem fundamento que visam criar impacto e desinformar a população.  A ciência acolhe todos os que querem jogar pelas suas regras e não pode prescindir de todos que dela querem participar. Este é um momento de união de todos que participam do debate das luzes e estão dispostos a enfrentear nossos problemas candentes por meio da razão. Não venha atrapalhar o que já está difícil por si só.

REFERÊNCIAS

[1] Dunker, C.I.L. (2017) Subjetividade em tempos de pós-verdade. In Ética e Pós-Verdade, São Paulo: Dublinense.

[2] Beer, P. (2019) Psicanálise e Ciência: um debate necessário. São Paulo: Blutcher.

[3] Ribeiro, S. (2019) Oráculo da Noite. São Paulo: Companhia das Letras.

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O que é preciso saber para que o seu crush seja o verdadeiro amor digital http://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br/2020/06/26/o-que-e-preciso-saber-para-que-o-seu-crush-seja-o-verdadeiro-amor-digital/ http://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br/2020/06/26/o-que-e-preciso-saber-para-que-o-seu-crush-seja-o-verdadeiro-amor-digital/#respond Fri, 26 Jun 2020 07:00:00 +0000 http://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br/?p=615

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Os hotéis internacionais em Israel apresentam, caracteristicamente, um vasto saguão de entrada com muitas mesas e cadeiras para dois ou quatro lugares. No começo achei aquilo pouco funcional, pois não servia nem como cafeteria muito menos como restaurante, mas como uma sala de estar ampliada. Gradualmente comecei a perceber que as mesas estavam quase sempre ocupadas por casais vestidos de modo ortodoxo. Fiquei observando os encontros e logo ficou claro que aquele antigo costume, mediado por profissionais casamenteiros, aliás tão divertidamente descritos por Freud em livros como “Chistes e suas Relações com o Inconsciente” ou “Interpretação dos Sonhos” estava no mais vigoroso uso e atualidade.

Os jovens casais pareciam se divertir, ainda que sóbrios, tipicamente com uma garrafa de água mineral de soslaio. Não aparentavam o menor traço de vergonha ou embaraço com a situação. Alguém me disse depois que as práticas variam, mas que a mulher tem direito a um número relativamente finito de recusas, depois dos quais sua prerrogativa de escolha pode cair. O incrível aqui não é que a prática exista ainda hoje, mas que ela pode dar certo, no limite tênue e improvável do que podemos empregar essa expressão para casamentos.

Comparei aquele ritual com o similar nacional, que acompanho cotidianamente no Brasil. No começo achei inconcebível que ainda hoje tantos casais se formassem com tantas mediações, regras e ritos. A coisa toda lembra os casamentos arranjados pelas famílias, com seus interesses, o que remonta aos tempos pré-históricos, antes de termos inventado esta maravilha chamada “escolher alguém livremente baseado neste supremo valor chamado amor”.

Mas a comparação não saiu tão devastadora quanto eu previa. Pensei naqueles solitários contumazes que não conseguem ir a um cinema desacompanhados porque sentem-se em assédio moral imaginário permanente por aquela voz que diz e aquele dedo que aponta: “seu fracassado amoroso”. Pensei que eles poderiam contratar os serviços de um casamenteiro judaico. Mas logo vi que isso seria uma espécie de comprovação humilhante de que eles estão “mesmo”  fora da curva de como “as coisas devem ser”.

Lembrei de quantos pacientes parecem ter na cabeça uma narrativa condicional quanto a forma como o amor acontece. Lembrei dos textos de Freud sobre a psicologia da vida amorosa e de como produzimos condições, negativas e positivas, para a escolha de nosso objeto de amor. Entre elas é comum encontrar uma espécie de horror à própria ideia de que devemos agir ativamente para nos propiciarmos situações nas quais a contingência do amor pode acontecer. Aqui a palavra-chave costuma ser: “natural”.

Natural como sempre foi, amigos de amigos em turmas e festas ou baladas e barzinhos. Um exame mais apurado costuma mostrar que este natural indica apenas a retenção de condições nas quais outros amores aconteceram, em outras épocas da vida as quais, por exemplo, os amigos não estavam casados, as baladas tocavam rock progressivo e inexistiam aplicativos.

Apesar do aumento exponencial deste tipo de tecnologia na aproximação entre casais, há ainda efeitos residuais da primeira geração de usuários deste tipo de rede social. No seu agora clássico “Tinderellas” [1], Lígia Figueiredo e Rosane de Souza, detectaram três estilos de uso destes aplicativos:

  1. O curioso, que conversa muito, mas fala pouco de si, demora para se envolver, tal qual um antropólogo que está pesquisando uma outra cultura
  2. O recreativo, que está em busca de diversão, que forma certos códigos e procedimentos para conectar-se a alguém ajustado para a ocasião.
  3. O racional, que está olhando para a tarefa em busca de uma escolha de longo prazo, com forte intimidade e investimento de parte a parte.

Cada perfil de uso combinaria-se com um tipo de apego –seguro ou inseguro, evitativo ou ansioso–, que exprimiria de forma compacta a maneira como teríamos aprendido a amar quando de nossos primeiros amores, ou seja, com nossos pais e cuidadores.

Descobrindo-se com mais clareza o que cada um quer (seu estilo de uso), esclarecendo-se as condições e escolha (o tipo de apego) e estabelecendo-se com maior transparência do que se compõe o outro, seus traços e qualidades “dinheirais, sexuais e intelectuais”, nada poderia escapar ao procedimento. Bastaria se dar o trabalho de repeti-lo até encontra o match, crush e seguir viagem.  

Mas não é isso que está acontecendo. A quantidade de sequelados pelos desencontros digitais, dos cansados de tanta oferta enganosa, dos que simplesmente não suportam a situação tal qual ela se apresenta ainda é muito grande.  Talvez esteja faltando ao procedimento alguns ingredientes da velha sabedoria judaica.

Cena do episódio “Hang the DJ” da série Black Mirror (Jonathan Prime/Netflix)

No episódio “Hang the DJ” da série Black Mirror, um programa determina o encontro entre casais assim como o tempo que eles permanecerão juntos. Amy e Frank ficam apenas doze horas, dormem juntos, mas não transam neste primeiro fugaz encontro. Nada de surpreendente e notável acontece neste primeiro encontro, a não ser o fato de que nele “algo” realmente aconteceu.

Depois disso ambos têm relacionamentos mais longos e curtos, mais ou menos desastrosos, até que o programa os recoloca juntos novamente. Desta vez, eles agem de modo contraintuitivo decidem juntos não olhar o tempo de duração que este encontro terá.  Ora, esta decisão de “não saber” parece ser essencial para que o amor aconteça.

Talvez o que os aplicativos carreguem como falsa demanda reside na ideia de que saber mais sempre aumenta nossa perspectiva de decisão. Às vezes saber menos –sobre o que se quer, sobre quem se é e sobre o que queremos do outro– abre o vão necessário para que o amor aconteça em sua lógica de encontro e de transformação.

Logo no primeiro encontro entre Frank e Amy acontece algo quase imperceptível para o espectador, mas crucial para tudo o que se seguirá: eles descumprem juntos uma regra. Isso se repetirá na decisão de não saber e também no que sucede a trama (o spoiler para aqui e você vai ficar sem saber como acaba).

Isso ajudaria a entender porque tantas pessoas têm ódio mortal dos aplicativos, como se eles vendessem uma falsa promessa, que na verdade estaria mais na nossa interpretação e uso sobre o que eles oferecem, ou seja, como método de encontro eles trazem este efeito iatrogênico de nos fazer acreditar que saber mais e mais rápido é melhor.

Talvez sejam as mesmas pessoas que antes amaldiçoavam o amor romântico antes mesmo de ler seu manual de uso (Goethe, Balzac, Flaubert, Stendhal,  Tolstoi, Clarice Lispector, Ana Cristina César, Hilda Hist e todos os outros). Isso nos leva a formulação de tipos e enquadramentos muito rápidos sobre o outro, sobre nós naquela situação. Isso aumenta a pressão urgente para decidir e não “perder mais tempo”.

Uma leve coerção, como a exercida pela regra casamenteira judaica, de que você pode escolher, mas depois de certo número de tentativas sua liberdade pode cair, me parece essencial para aqueles que ainda acham que encontrar alguém é como andar pelas vitrines do shopping center ou expor-se como pedaço de carne no açougue.  

Em síntese, o amor digital não tem que ver com contrato, não tem que ver com livre escolha de mercadorias, não tem que ver com gostos semelhantes, nem com “tipos” ou “traços” humanos que se completam.

Ele depende de nossa capacidade, cada vez mais rara, de suportar não saber e de agir em conformidade com o seu desejo, assim mesmo.

REFERÊNCIA

[1] Figueiredo, L.B. & Souza, R.M. (2017) Tinderellas. São Paulo: Ema Livros.

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Do negacionista ao tecnólogo prudente: veja quem você é no pós-quarentena http://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br/2020/06/19/relaxamento-da-quarentena-reformula-a-maneira-como-voce-mantem-as-relacoes/ http://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br/2020/06/19/relaxamento-da-quarentena-reformula-a-maneira-como-voce-mantem-as-relacoes/#respond Fri, 19 Jun 2020 07:00:48 +0000 http://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br/?p=601

Carol Jeng/ Unsplash

Ao que tudo indica a abertura chegou, de forma lenta, gradual e irrestrita. Ou seja, a pandemia começa a dar mostras de arrefecimento no Brasil, ainda que em alguns centros esteja no processo de agudização, em um movimento de expansão dos grandes centros para a capilaridade do interior. Forma-se agora uma espécie de litoral entre a regra clara e universal –“não saia de casa”– e suas exceções, limites e casos singulares.

Entendo que este processo envolve o exercício ético do emprego de tecnologias e a produção de um novo espaço de negociação e de confiança entre o privado e o público. Se antes o risco estava entre zero e um, o que nos permitia distinguir entre os que seguiam a quarentena e os que a violavam, com a exceção dos que por dever de ofício precisavam se expor ao risco e demandavam assim proteções e cautelas especiais, como as EPIs, agora cada qual deve calcular o risco subjetiva e objetivamente, com os recursos e necessidades que se impõem.

Por exemplo, deve uma idosa de 87 anos receber a visita de seu neto, que ela jamais viu desde o nascimento? Mesmo que os pais estejam em quarentena fechada há o risco do elevador, do automóvel e das escadas. Mas quem decidirá a tomada de risco? Os pais, a própria avó, um infectologista?

Outro caso. Uma jovem está prestes a mudar-se para um apartamento recém-adquirido, mas antes disso decide fazer uma pequena obra. O condomínio decide interromper obras durante a quarentena. Mas quem dirá quantos pedreiros, barulhos e materiais de construção constituem um risco para os habitantes do prédio, e quantos olharão para o risco enfrentado pela jovem proprietária que não pode praticar a quarentena como gostaria?

São exemplos de como a tomada de risco convoca uma análise para a qual estamos desprevenidos, porque ela não é uma análise de risco individual, mas, como diria Lacan, de risco transindividual. Ou seja, quando eu avalio que represento um risco grande para você a quem amo, ainda que você mesmo não pense assim, deve prevalecer o meu juízo ou o seu?

A balança aqui parece reunir um intrincado jogo de relações, que passam, por exemplo, pelo acúmulo de comorbidades, como diabetes e fragilidade cardíaca, pela soma de vulnerabilidades, como faixa etária e condição nutricional, e pelos ganhos potenciais derivados da tomada de risco, por exemplo o aumento de renda que, eventualmente, pode ajudar a melhorar as condições para suportar a quarentena, sua ou dos seus.

Há sites que mostram áreas com maior incidência de casos de covid-19, alguns capazes de indicar a quantidade de contaminados por rua. Por outro lado, começamos a encontrar cada vez mais pessoas que andam com o teste positivo no bolso, para atestar sua imunidade. Deveriam eles usar máscaras, para incentivar tal prática, que coletivamente nos protege a todos? Ou deveriam exibir sua imunidade publicamente? Isso nos leva a outra consideração: e aqueles que apenas se dizem imunes?

O ponto chave aqui é que teremos que reconstruir nossa confiança nas palavras, assim como, com todo cuidado nos autorizar a saber sobre a quarentena alheia. Entre o aberto e o fechado existe o entreaberto. Quando o risco se distribui entre contrair uma forma grave ou assintomática do vírus, nos aproximamos da lógica que força a alternativa entre vida ou morte, ainda que alguns pensem em reduzi-la à oposição entre a bolsa ou a vida.

Podemos então discernir quatro percursos daqueles que estão agora reformulando sua relação com a quarentena:

Negacionistas

Os negacionistas, que persistem e prolongam uma atitude de negação do risco ou de seu aspecto coletivo e indeterminado. São aqueles que se acreditam imunes, escolhidos ou especiais demais para serem atingidos por esta espécie de punição moral, com qual a doença foi vestida. São aqueles que precisam negar ostensivamente a quarentena e que agora se opõe ao uso de máscaras e procedimentos elementares de precaução.

Binários

Os binários, que diante da lei colocam-se apenas uma alternativa: obedecer ou transgredir. Neste caso é preciso destacar como a apresentação dos planos de abertura, com toda sua complexidade, com idas e vindas, e talvez com certa precocidade, fez com que o imenso sacrifício representado pela quarentena, com seu impacto diverso em nossas práticas de redução de angústia e estabilização sintomática, de medo e de perda de liberdade, tenha sido meramente revertido para o polo da liberação. Como se furar a quarentena seguisse a regra de: “furado por um, furado por mil”.

Aqui a dificuldade da matéria não é pouca. Como esclarecer a população de que cada qual deveria analisar criteriosamente suas próprias condições de vulnerabilidade, calcular riscos a partir daí, criando novas formas de isolamento social?

Vasos comunicantes

Os vasos comunicantes, que formaram gradualmente uma rede interligada de quarentenados e de pessoas ou grupos “seguros”. São pais e avós que se frequentam sob certas condições, empregados que voltam ao trabalho depois de um tempo vivendo em condições mais seguras, ou pessoas que fazem o teste para poder integrar a rede de frequentação.

“Vasos Comunicantes” é o nome do romance surrealista publicado em 1932 por André Breton, onde se misturam poesia e prosa, dados reais e testemunhos imaginários em torno do que ele chamou de “contingência objetiva”, ou seja, toda a franja de fenômenos que ocorre na zona de passagem entre o sono e a vigília, entre a fantasia e a realidade que nos torna seres de aposta e risco.

Cada estabelecimento comercial, cada escola, cada casa deverá estabelecer suas próprias regras de descontaminação ou cuidado e negociar que tipo de vaso comunicante pretendem criar. Isso significa deixar claro, transparente e compartilhados os riscos assumidos.

Prudentes

Os prudentes, que estão dispostos a usar todos os recursos que a tecnologia oferece, para avaliar riscos, criar práticas de proteção e reduzir fatores de contágio, mas ao mesmo tempo voltar para o mundo. A prudência ou bem-aventurança era chamada pelos gregos de sophrosine a virtude fundamental, a mãe de todas as outras virtudes. Para Aristóteles, a sophrosine é uma espécie de saúde moral, representada pelo caminho mediano entre a dor e o prazer, figurada pela função corporal do tato. Para Plotino ela é a “purificação (kahtarsis) preparatória para o retorno”[1].

Vão usar termômetros e álcool em gel, praticar distâncias e máscaras e confirmar que na nossa cultura, amar é proteger, mas ao mesmo tempo vão espaçar horários de trabalho, negociar a revelação de contaminações próximas e criar outras modalidades de circulação, pois amar é também apresentar ao outro o risco contingente de estar na vida.

Como diz Ailton Krenak: primeiro o cuidado, depois a coragem.

REFERÊNCIA

[1] Peters, F. E. (1974) Termos Filosóficos Gregos. Lisboa: Calouste Goulbekian.

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