Oscar do Mal-Estar: parasitas também estão na vida do casal e de Brasília
No filme "Parasita" (2019), de Bong Joon-ho, indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro, duas famílias vivem vidas paralelas. Uma habita a riqueza elevada do condomínio fechado e planejado, com suas telas, câmeras e sistemas automáticos de abertura e fechamento de portas. Outra mora no porão de um beco, com janelas precárias, invadida por exalações de pesticidas, bêbados urinadores de ocasião, mas também amigos que aparecem do nada e conflitos nos quais a vida pessoal se mistura com pequenos negócios e golpes cotidianos.
Dois elementos estão na base da fusão destes dois mundos: a educação e a tecnologia. É por meio dela que o caçula da família rica se comunica com o intruso desconhecido. É por meio do código morse, esta tecnologia arcaica e clássica, que o baixo mundo fala entre si, de forma secreta. É por meio da busca de sinal parasitado, que sempre está mais disponível nas alturas, que as intrigas e coordenações familiares podem acontecer.
A cena hilária da disputa sangrenta pela posse de um celular, prestes a disparar uma mensagem decisiva, na sala de estar ocupada pelo serviçais é uma alegoria perfeita de como habitamos dois mundos que se interpenetram, mas que não se reconhecem, e como em cada um deles há uma disputa pela posse dos meios, sem que cada mundo perceba a natureza exata e a sua participação neste conflito. Ou seja, há sempre um terceiro mundo dentro do terceiro mundo, uma periferia dentro da periferia, assim como há um centro dentro do centro.
Ocupado em sua pequena guerra particular pelo centro do centro, os aristocráticos Park, não conseguem perceber a luta pelas migalhas, que se desenrola à sua frente e no interior mesmo de sua vida cotidiana, entre os Kim. Por isso mesmo são tão facilmente enganados. Mas há outro aspecto desta guerra entre mundos incomunicantes: a educação. É por meio dela que os ricos demandam serviços aos pobres, nesta brecha aberta entre o poder do dinheiro e poder da cultura. Professores particulares que enganam a aristocracia incapaz de interiorizar valores como a arte e as línguas estrangeiras.
O fetiche cultural, assim como o fetiche sexual, representado por uma calcinha de baixa qualidade, é o segundo ponto pelo qual os Park se fazem enganar: fixados no imaginário do índio americano, na alienação do gosto e do ritual de adequação, como signo de pertencimento instrumental a outra cultura, os Park "pedem" para serem enganados pelos Kim. E aí que aparece o falso professor, o falso entendido, o falso motorista.
Contudo, a graça e a força deste filme coreano, que por outro lado parece tão brasileiro, é que com a progressão das coisas vamos vendo como embaixo do porão há sempre um outro porão, e que as escadarias que nos elevam são também as que sempre podem nos levar um pouco mais para baixo. As escadas são a grande imagem da educação e da forma de poder em disputa neste filme. Tudo se passa como se o poder real das escadas da educação e sua força transformativa para elevar vidas (ainda que vivida como ideal ingênuo pelos que vivem nos porões), entrasse em choque com o poder virtual da comunicação digital onde tudo é falso, feito para o gosto do freguês, para a intriga e o golpe.
É deste curto-circuito entre os conflitos entre mundos e intra-mundos, que emerge a violência. É ele que torna a pedra do prosperidade, que representa a cultura como meio de tratamento de conflitos, o mais simples e brutal instrumento de vingança imediata. Por isso ela é sentida pelos envolvidos como irracional, ininteligível e disruptiva. Por isso que ela é pressentida pelo cheiro. O cheiro da diferença que impregna as pessoas e denuncia, ainda que na penumbra e de forma indeterminada que a verdade está em outro lugar. Por isso se diz que algo cheira mal, como signo do mal-estar, que ainda chegou a ser nomeado.
Um efeito análogo é tematizado em outros três filmes concorrentes ao Oscar. "Democracia em Vertigem" (2019), de Petra Costa, mostra uma degradação análoga no interior da política brasileira. Um filme que ganha força à medida que nos distanciamos dos fatos. Em vez do cheiro aqui é a ideia de vertigem que denuncia a emergência do mal-estar.
Vertigem é um grande tema literário e filosófico. É na beira do precipício do mundo que conseguimos entender do que o mundo é feito, e qual é o lugar de nossas escolhas éticas, diria Kierkgaard com seu conceito de angústia. É também a vertigem que faz Stephan Hero, de Joyce, repetir o desespero daquele que, como Ícaro, se percebe voando com asas coladas com cera, ou seja, prestes a cair.
O filme nos coloca vendo as coisas de cima. Ele foi criticado por ver as coisas demasiadamente comprometidas com um ponto de vista biográfico e pessoal. Mas é exatamente este o caminho pelo qual podemos entender os golpes dentro dos golpes, aliados com a potência alienante da digitalidade e com a recusa calculada do poder da educação, que tomou conta do Brasil. Ou seja, não é com a imparcialidade neutra que conseguimos encarar a vertigem do mal-estar, mas pela assunção radical de que estamos em um ponto de vista entre outros. É radicalizando a perspectiva que nos damos conta que ela é uma perspectiva. Disso emerge o abismo de uma história feita de pessoas parasitando o medo alheio, a miséria e as ilusões tão facilmente procriadas em cativeiro. Com isso podemos perceber melhor os outros pontos de vista e a divisão ou alienação do nosso próprio lugar na história. Ao se apresentar fora da narrativa local de perdedores e ganhadores, com o recuo necessário para ler a vertigem o filme insinua um espectro que ronda Brasília, o espectro da história. Cedo ou tarde teremos os nossos julgamentos de Nuremberg onde os colaboracionistas serão julgados, não à jato, mas bem lentamente.
A terceira forma de mal-estar que aparece no Oscar 2020 podemos ver em "História de um Casamento" (2019), dirigido por Noah Baumbach. Aqui se trata do mal-estar no interior do amor quando este é atravessado pelas narrativas de gênero, de família e os nossos ideais de felicidade. Novamente temos a decomposição dos conflitos, não apenas entre os caminhos de vida tomados por Scarlett Johansson, um dia atriz principal, depois amante e esposa do diretor de teatro Adam Driver. Largando como um novo "Kramer versus Kramer", que periodicamente renova a narrativa da dissolução familiar americana, o filme evolui para algo bem mais interessante que é a a crise interna de cada qual diante do fim da parceria administrativo-familiar-narcísica de cada um dos envolvidos.
Aqui o mal-estar começa a entrar no espectador, não pelo cheiro, nem pela visão, mas pelos ouvidos. São as palavras derivadas dos contextos de suas promessas, os pesos do mal-entendimento consentido que formaram um casamento, o autogolpe que damos em nosso próprio desejo quando não o distinguimos de nosso narcisismo. Em vez do mundo de cima e o mundo de baixo, temos agora o Leste e o Oeste. Cada um sentido que o outro parasitou seus sonhos, que o amor persiste mas que ele é um fraco parasita para sustentar formas de vida em contradição e conflito. O casamento entre economia libidinal e economia real deixa rastros de ressentimento. O filme é uma narrativa trágica de como o amor se torna importante diante desta realidade maior.
Finalmente, o último vértice deste polígono lógico do mal-estar é naturalmente "Dois Papas" (2019) de Fernando Meirelles. Desta vez trata-se do conflito no interior da autoridade das instituições. A conversa continuada entre o papa Bento XVI e o futuro papa Francisco, retoma os tema dos dois mundos: o alemão, filósofo de gabinete, pianista erudito, que fez uma carreira institucional perfeita de dedicação à política profissional do Vaticano de um lado e o torcedor argentino do San Lorenzo Dalmagro, formado na Realpolitik da repressão e da colaboração com o regime militar, que fez uma carreira popular e que está cada vez mais disposto a sair da máquina. Ou seja, ambos concordam que querem sair, mas não sabem bem para onde. Sentem-se parasitas de um sistema que só agora, no fim da história conseguem intuir a natureza e o funcionamento.
É o mal-estar do fracasso, da falência, da degradação de planos e planejamentos, corroída por dentro pela emergência da pedofilia, do autocratismo, do consentimento com a violência e a vilania. Ambos sentem-se parasitas de um sistema em decomposição, uma peça excessivamente adequada e adaptada, que por isso mesmo concorre para a dissolução da unidade que a criou.
O ponto forte do filme é o choque entre o teor dos diálogos travados, o caráter banal e comezinho das palavras realizado em cenários grandiosos como a Capela Sistina ou os Jardins de Castel Gandolfo. O mal-estar penetra pelos poros do corpo, que envelhece, em um Anthony Hopkins, no qual não sabemos o limite entre a dramaturgia e a realidade, pelas entranhas da memória dos erros cometidos, pelo caráter insuportável da compactuação e da colaboração com o mal, ainda que seja em nome do bem.
No fundo todos eles são parasitas: da política brasileira, das promessas de casal, das instituições eclesiásticas, de formas de vida alheias, das quais nos ocupamos para sobreviver. Mas, se ao menos levarmos em conta os diagnósticos fílmicos parece que estamos caminhando para um consenso de que o juízo final se aproxima e que ele não é formado pelas oposições simples que estamos criando para nos escondermos dele.
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