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O que é verdade e o que é mentira sobre Freud na série da Netflix

Christian Dunker

03/04/2020 04h00

Série "Freud" (Divulgação/ Netflix)

[ATENÇÃO: o texto pode conter spoilers]

Às vezes me pergunto se não há Tarantino demais no cinema contemporâneo, não sei se a fórmula realmente se aplica a qualquer coisa. Este é o caso da série "Freud" (2020) da Netflix que alcançou o top 3 de "conteúdo para maratonar" na primeira semana da quarentena.

Tudo vai bem até que o Sr. Sobrenatural de Almeida resolve aparecer. A Viena imperial está admiravelmente bem representada, com destaque para as cenas íntimas que retratam como as pessoas viviam nos quintais de dois ou três pisos em contraste com a imponente Ring Strasse, projetada e executada pelo imperador Francisco José, retratado com perfeição germânica nos costumes e no modo de agir. O filme foca a tensão política entre Áustria e Hungria, que sintetiza as dificuldades de manter a unidade de um império que incluía as históricas diversidades nacionais dos Bálcãs até a Polônia.

A Viena fin de siècle, capital do Império Austro-Húngaro, era o lugar onde gestou-se o novo mundo da arquitetura modernista, da art nouveau, do expressionismo de Klimt, o dodecafonismo de Schoenberg,  a fenomenologia de Husserl e o positivismo lógico de Wittgenstein, passando pelos cafés e suas incríveis Sacher Torten. Os detalhes da série são impagáveis, como por exemplo, a governanta de Freud, que fala um adorável alemão com sotaque ídiche, quase inencontrável hoje em dia, assim como sua sabedoria: "A felicidade é um pássaro que logo vai embora. O coração é uma gaiola".

Muitos me escreveram porque a série constrói o jovem Freud como herói, auxiliar de investigador policial e paranormal, o que obviamente tem levantado dúvidas e críticas de quem está menos habituado com o personagem histórico. Para reduzir spoilers e tentar responder a estas inquietações, vou fazer uma lista de coisas verídicas e plausíveis, presentes na série, ao lado de outras que são obra e graça da liberdade ficcional exercida pelos diretores e roteiristas.

A série permite distinguir três tipos de ficções: aquelas que preservam fatos históricos acrescentando-lhes novos fatos "fictícios", as ficções que preservam fatos históricos, mas os interpretam de um modo "alternativo" e as ficções que criam um universo ordenado de fatos e interpretações que preservam ou derrogam a "estrutura de ficção" referida a uma verdade.  Vejamos como isso funciona em um exercício de aplicação da lógica bivalente aos oito primeiros episódios da primeira temporada da série "Freud".

Sigmund Freud (Divulgação)

  1.  Sim, Freud usou cocaína. Mas ele o fazia na forma injetável, estudando em si mesmo, por meio de instrumentos de medicação da potência muscular, como o dinamômetro e o neuramebímetro, os efeitos sensoriais e motores da droga. Ele publicou quatro artigos científicos sobre isso [1], entre 1884 e 1887, data provável dos acontecimentos narrados na série, posto que ele se casou com Martha Bernays em 1886. Advogou seu uso terapêutico em quadros como neurastenia, histeria, melancolia, mas também como tratamento para a dependência de morfina, que ocasiona dores terríveis durante suas crises de abstinências. Ele recomendou a droga a seu amigo Fleischl, que se tornou dependente e finalmente se suicidou. Freud pesquisava o uso terapêutico estimulante e analgésico da coca, em cuja época só havia medicações calmantes. Freud abandona esta linha de pesquisa diante do caso de seu amigo, mas também porque surgem relatos de forte dependência gerada pela coca. O oftalmologista Karl Köller, amigo de Freud, [2] retomou a pesquisa sobre a cocaína, focando em seus efeitos anestésicos, chegando a operar o glaucoma do pai de Freud. Köller tornou-se um dos pioneiros das cirurgias oculares, sendo indicado várias vezes ao prêmio Nobel.  
  1. Não, Freud não se envolveu sexualmente com pacientes. Bertha Papenheim, nome real de Ana O., paciente atendida por Joseph Breuer, cujo caso é discutido em "Estudos sobre Histeria", sofreu um "efeito colateral" do método, pela erupção de sentimentos sexuais em relação a seu médico. Freud, que foi uma espécie de supervisor de Breuer neste caso, lembrava o dito de Charcot de que "na histeria é sempre a coisa genital". A importância da empatia e a "saúde do médico" são de fato recomendações de Freud a Breuer e não o contrário. Por outro lado, Breuer ajudou financeiramente Freud e encaminhou-lhe os primeiros pacientes, como a série sugere. Apesar disso, durante algum tempo houve um grande empenho para mostrar que Freud não era boa pessoa. Um crítico literário chamado Crews chegou a levantar, como evidência da infidelidade freudiana, a assinatura no livro de um albergue na Morávia como prova de que ele tinha um caso com a cunhada, Mynna Bernais.
  1. Sim, Freud usou o hipnotismo e a catarse como método de cura. Na época de sua colaboração com Breuer, resultando no trabalho a quatro mãos "Estudos sobre Histeria" em 1893 [3], as internações de histéricas com sintomas como cegueira e insensibilidade a dor eram comuns. Freud abandona a hipnose pois seus resultados não eram duradouro, as causas dos sintomas não eram tocadas e porque ele se achava um péssimo hipnotizador. Os tratamentos envolvendo choques térmicos, elétricos, exercícios mecânicos e internação com contenção física eram a regra. Theodor Meynert era de fato o chefe de Freud na psiquiatria e detestava a perspectiva de Charcot e Janet ("a praga francesa"), mas nunca demitiu Freud. Este, por sua vez, nunca escreveu um trabalho chamado "O poder do Hipnotismo", mas publicou um artigo chamado "Um Caso de Cura pelo Hipnotismo"[4].
  1. Não, Freud não teve nenhuma paciente chamada Fleur Salomé. Mas o nome parece muito bem escolhido para a protagonista da série. Junta um quase anagrama de Freud (Freul … Fleur), com uma das mulheres mais admiradas por Freud, Lou Andreas-Salomé (1861-1937), amante do poeta Rainer Maria Rilke e de Nietzsche, uma das primeiras a trazer o tema da repetição para a psicanálise. Ao mesmo tempo parece uma alusão a "Les Fleurs du Mal", ("As Flores do Mal", 1857), coletânea de poesias de Baudelaire que inicia a modernidade freudiana. "O Médico e o Monstro", de Robert Louis Stevenson, é de 1885, e apesar do não envolvimento de Freud com o espiritismo, muitos veem na literatura romântica da dissociação, dos estados alterados de consciência e do desdobramento da personalidade um dos precursores discursivos da emergência da psicanálise.

    Lou Andreas-Salomé (Atelier Elvira)

  1. Sim, Freud tinha uma coleção de estátuas de antiguidades. Depois ela se tornou famosa e exposta em vários museus pelo mundo. Ao que tudo indica, ele não conheceu rituais com múmias e não há rastros de seu contato com a resistência húngara contra a hegemonia dos Habsburgos. Freud tinha um fascínio por Aníbal (247-183), herói cartaginês que chegou às portas de Roma, tendo vingado seu pai. Aparentemente é dele a estátua que é mostrada na abertura de cada episódio. A saga de Freud como pesquisador na Universidade de Viena é romanceada, no entanto, explora fatos realmente ocorridos: as exposições públicas na universidade, seu trabalho com Charcot, Breuer, Meynart, o preconceito contra judeus, sua luta para tornar-se professor, o que realmente acontece apenas em 1902.
  1. Não, Freud não acredita em deuses ou demônios. Na psicanálise eles não são mais que criações dos próprios seres humanos moldadas por nossas experiências infantis de desamparo e proteção, por nossas aspirações narcísicas, por nossas ilusões e ideais. As experiências paranormais, como a telepatia e o déjà-vu, são construídas a partir de nossas experiências com outros e com nossos corpos e afetos que são como dragões no paraíso. Taltos é de fato um espírito maligno do folclore húngaro e está ligado a um  tipo de xamanismo. Enquanto função social a psicanálise é homóloga à dos xamãs, ainda que não nos transformemos em animais, agimos como diplomatas entre mundos, embaixadores entre gêneros, mediadores entre conflitos e tradutores entre linguagens.   
  1. Sim, Freud era amigo de Arthur Schnitzler. Este último de fato trabalhou na mesma enfermaria psiquiátrica de Meynart, contudo o primeiro contato entre eles parece ter ocorrido somente em 1906[5]. Freud admirava o autor de "Traumnovelle" ("Novela Onírica", 1926), depois tornada o filme "De Olhos bem Fechados" (Stanley Kubrick, 1999) pelo seu método de escrita associativa com crítica da moralidade com alta paradoxalidade dos personagens. Recursos deste tipo são usados várias vezes na série, por exemplo, ao mostrar eventos que não aconteceram ou ao recuperar experiências infantis lembradas, como a cena de Freud com o pai na rua, onde ele encontra seu próprio corpo, ou a cena das mãos da mãe de Freud esfregando-se até produzir o pó, do qual somos feitos e para o qual voltaremos. Ambas as cenas, diga-se de passagem, são lembranças reais mencionadas por Freud.
  1. Não, Freud não participou de investigações policiais. Contudo, ele escreveu sobre a possibilidade do uso do hipnotismo para praticar crimes. Além disso, muitos já observaram [6] a homologia entre a emergência da psicanálise, como prática clínica e a aparição do romance policial como gênero literário. "Os Assassinatos da Rua Morgue", de 1841, e "A Carta Roubada", de 1844, de Edgar Alan Poe, ao lado dos romances do médico escocês Arthur Conan Doyle, sobre Sherlock Homes, publicados em 1897 e 1890, têm em comum a investigação de um problema (crime) na qual se coligem evidências e seguem-se hipóteses, de modo a reconstruir a verdade. Esta investigação seria homóloga da investigação psicanalítica na qual tenta-se reconstruir uma cena traumática, revivendo-a em detalhes, que foram ocultos pelo próprio paciente porque eles exprimem desejos inadmissíveis. Portanto o tratamento psicanalítico é como uma investigaçaõ policial que leva o sujeito a descobrir em si o criminoso que ele procura fora de si, tal qual o herói trágico grego Édipo.
  1. Sim, o verdadeiro nome de nascença de Freud é Sigismund. É assim que ele é chamado por sua mãe Amalie em uma cena de Shabat na casa dos Freud. Ele suprimiu o "s" de seu nome em 1877. Sua noiva Martha de fato morava em Hamburgo e só chega a Viena depois de 900 cartas de amor trocadas entre os dois, porque Freud não tinha dinheiro para arcar com o sustento de uma família.
  1. Não, Freud não morava, nesta época, em uma casa assombrada pelo espírito de um músico, que teria sido o responsável pelo incêndio no teatro. [Mas de fato, como fui lembrado por um leitor (Lammel), Freud e Martha ocuparam o número 8 da Theresien Strasse, onde foi erguido um prédio no lugar do antigo Sühnhaus, o teatro vienense que pegou fogo em 1881. Mathilde a primeira filha do casal Freud, foi também a primeira criança nascida neste novo prédio reconstruído com o dinheiro pessoal do imperador. O local tinha fama de mal-assombrado, mas Freud, como cientista, declarou que isso não iria impedí-lo de morar alihttps://www.geschichtewiki.wien.gv.at/S%C3%BChnhaus].  Portanto o filme acerta ao colocar Freud no prédio assombrado, mas erra ao fazê-lo antes de seu casamento com Martha. De toda forma Freud adorava cães, e particularmente da raça chow chow como são mostrados na abertura do terceiro episódio da série. O mais famoso deles Jo-Fi participava das sessões e Freud reputava que ele exercia uma função calmante sobre seus pacientes. Sabe-se que entre 1885 e 1886 Freud morou em Paris, fazendo seu estágio com Charcot na Salpetrière, hospedando-se no Hotel du Brezil, na Rue Le Goff número 10.

 Referências

[1] Freud, S. (1884). On Coca. In: BICK, R. (ed.). Cocaine papers by Sigmund Freud. New York: Meridian, 1975.

____ . (1885a). Addenda to On Coca. In: BICK, R. (ed.). Cocaine papers by Sigmund Freud. New York: Meridian, 1975.

____ . (1885b). Contribution to the knowledge of the effect of cocaine. In: BICK, R. (ed.). Cocaine papers by Sigmund Freud. New York: Meridian, 1975.

____ . (1885c). On the general effect of cocaine. In: BICK, R. (ed.). Cocaine papers by Sigmund Freud. New York: Meridian, 1975.

____ . (1887). Remarks on craving for and fear of cocaine. In: BICK, R. (ed.). Cocaine papers by Sigmund Freud. New York: Meridian, 1975.

[2] Almiro dos Reis Jr, TSA (2009) Sigmund Freud (1856-1939) e Karl Köller (1857-1944) e a descoberta da anestesia local Rev. Bras. Anestesiol. vol.59 no.2 Campinas Mar./Apr. 2009

[3] Freud, S. & J. Breuer. J. (1893) Estudos sobre Histeria. Obras Completas de Sigmund Freud, VOL II, São Paulo: Companhia das Letras.

[4] Freud, S. (1988) Um caso de cura pelo hipnotismo. In Obras Completas de Sigmund Freud. Vol I, Buenos Aires: Amorrortu

[5] Carta 1 Caro Dr. Schnitzler, Há muitos anos estou ciente da ampla harmonia que existe entre as suas opiniões e as minhas sobre muitos problemas psicológicos e eróticos; recentemente encontrei até a coragem de acentuar expressamente essa harmonia (Fragmento de uma Análise de um Caso de Histéria, 1905). Sempre me perguntei espantado como o senhor havia chegado a este ou aquele detalhe de conhecimento secreto que eu havia adquirido mediante aturada investigação do tema, e finalmente cheguei ao ponto de invejar o autor que até então admirava. Agora o senhor pode imaginar como fiquei satisfeito e eufórico ao ler que o senhor também tem-se inspirado em meus escritos. Quase lastimo que tive que alcançar os 50 anos para ouvir algo tão lisonjeiro. Seu com admiração, Dr. Freud. (Viena, 1906) 

[6] Shepherd, M. (1987) Sherlock Holmes e o Caso do Dr. Freud. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Dunker, C.I.L., Assadi, T., Ramirez, H. et alli (2002) Romance Policial e Pesquisa em Psicanálise

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Sobre o Autor

Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor do Departamento de Psicologia Clínica e coordenador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Universidade de São Paulo)... além de youtuber.

Sobre o Blog

Aqui vamos discutir o impacto da linguagem digital e das novas tecnologias nos modos de produção de subjetividade, nas formas de sofrimento e na capacidade de inventar sonhos à altura de novos mundos por vir.