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Por que a web ataca atriz de Glee pelo desaparecimento de Naya Rivera?

Christian Dunker

11/07/2020 12h00

As atrizes Naya Rivera (esq.) e Lea Michele, que participaram da série "Glee" (David Livingston/Getty Images e Reprodução/ Instagram)

A atriz e cantora Naya Rivera, que viveu a personagem Santana Lopez na série "Glee", encontra-se desaparecida depois que o barco que ela pilotava em um lago no sul da Califórnia, foi achado à deriva, com seu filho de quatro anos, vestindo um colete salva-vidas. Logo em seguida Lea Michele, atriz que representava uma das antagonistas de Naya na série, passou a ser violentamente atacada nas redes sociais. Aparentemente a misteriosa desaparição de Naya, na vida real, só podia ter uma culpada, a sua adversária na vida ficcional de Glee. Os internautas não repeitaram nem mesmo o fato de que a  atriz está grávida, "cobrando" uma resposta, ou uma declaração pública de que ela de fato não teria raptado ou tramado do desaparecimento de Naya. Como se tivessem uma espécie de direito adquirido como vingança pelos infortúnios e pela inveja que Lea sentia pelo sucesso de Naya… como personagem da série.

O episódio pode ser tomado com um caso modelo da somatória de equívocos, enganos e confusões de sentimentos que só uma rede social pode produzir.  Tudo se passa como se tivéssemos "cancelado" a diferença entre personagem e atriz. A fronteira entre vida real e ficção se apaga. Diante da falta de sentido de certos acontecimentos, como a desaparição inexplicável de uma jovem e bela atriz de sucesso, emerge uma narrativa simples que torna tudo isso pleno de sentido. Um ótimo exemplo de como nosso desejo de punição e castigo, nossa ânsia de produzir culpados, se amplifica nas redes sociais.

Lea parece ser o lugar certo para depositar nossa raiva. Ela foi acusada de praticar maus-tratos e racismo no set de filmagem da série. Seus requintes de crueldade, denunciados por suas colegas de trabalho, atingiam particularmente jovens atrizes iniciantes.  Provavelmente a comoção e a compaixão esperada para o caso produziu o que em inglês se chama "mixed feelings", uma mistura de sentimentos que se aplica quando experimentamos afetos opostos em relação a uma mesma pessoa ou situação.

Aqueles que antes vibravam com o cancelamento da malvada Lea, agora duplicam sua satisfação em uma espécie de cancelamento do cancelamento.  Como se os que torceram por Naya contra Lea sofressem o efeito rebote de inversão da vingança. Como se o fato de que algo ruim acontecer a uma pessoa-personagem boa exigisse uma especie de correção da realidade. essa é uma forma de resolver afetos misturados, repurificando-os em uma nova usinagem de culpa e raiva. 

O processo de duplo cancelamento ou de reciclagem de uma figura cancelada para explicar o inexplicável  pode ser entendido como um dos efeitos da cultura da culpa. Todo sujeito dominado pela culpa é também um dependente do prazer purificador que ela traz consigo. Freud fala em três movimentos de nosso supereu, este nosso gerente geral interno da culpa: observar, julgar e punir. Essa dependência baseia-se no fato crescente de que se não encontro culpados nos outros a culpa voltará para mim.  Mas o supereu não age como um juiz imparcial que quer ver o equilíbrio restabelecido. Ele é muito melhor representado por um juiz punitivo, que goza e vibra quando executa suas sentenças, extraindo um prazer sádico, resguardando-se disso pela desculpa que está operando dentro da lei.

Muitas pessoas, e o funcionamento em estado de  massa digital parece nos inclinar para isso, podem se tornar dependentes deste prazer baseado no alívio da culpa. Este prazer pode ser chamado também de gozo, porque não envolve a própria corporeidade. Ou seja, se o prazer é de cada um o gozo passa sempre pela suposição que fazemos sobre a satisfação alheia. É porque a massa digital especula que Lea está gozando com a desaparição de Naya, que ela deve ser punida. Na verdade a desaparição de Naya faz cócegas em nosso superego, afinal como pode haver "crime" sem "culpado"?

Exemplo sumário. Uma pessoa muito pudica reprova o uso de pornografia em nome da moral e dos bons costumes. Outra pessoa gosta de pornografia e gostaria de vê-la permitida e amplamente divulgada, porque isso facilitaria sua forma preferencial de prazer. Quando se decreta a lei que autoriza a pornografia acontecem duas coisas na segunda pessoa: ela goza em função dos prazeres futuros (que ela ainda não teve) e ela goza porque seu adversário estará se contorcendo ao imaginar o prazer que o pornógrafo está tendo (gozando dela). 

A loucura humana não tem que ver apenas com prazeres permitidos e interditados, mas com o fato de que além do prazer que podemos extrair de nossos próprios limites e condições temos que lidar com o gozo, que sempre passa pelo outro, e pelo prazer que "nós" supomos que "ele" ou "eles" estão experimentando. É por isso que é tão difícil, para muitos, reconhecer erros e voltar atrás. Quando fazemos isso supomos que estamos "dando o braço a torcer" e que o outro vai gozar com isso.  

Conclusão: se a gramática da culpa comanda nossas relações com o outro e com o mundo, quando uma desgraça acontece alguém tem que ser punido (senão seremos nós mesmos). Quando temos pensamentos de vingança, ou o mero desejo de que alguém que detestamos se dê mal devemos estar preparados para o efeito rebote de retorno do cancelado. Daí sentimos culpa onde ela é inexplicável pois não agimos de forma a causar o mal do outro. É nesta hora que o comportamento de massa precisa de uma nova purificação. É preciso inverter a culpa em satisfação gozosa achando um novo culpado.O processo é semelhante a dependência química, na qual precisamos cada vez de doses mais altas para obter os mesmos resultados de alívio e purificação.

E de cancelamento em cancelamento vamos nos achando cada vez mais puros, quando o que acontece é que vamos nos tornando cada vez mais pobres … de espírito.

Sobre o Autor

Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor do Departamento de Psicologia Clínica e coordenador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Universidade de São Paulo)... além de youtuber.

Sobre o Blog

Aqui vamos discutir o impacto da linguagem digital e das novas tecnologias nos modos de produção de subjetividade, nas formas de sofrimento e na capacidade de inventar sonhos à altura de novos mundos por vir.