Topo

Blog do Dunker

Por que a hipnose não seria capaz de ajudar Pyong Lee a vencer o BBB?

Christian Dunker

13/03/2020 04h00

Reprodução/GlobosatPlay

No Big Brother Brasil 2020 pudemos acompanhar demonstrações de hipnotismo praticadas por Pyong Lee. O hipnotismo voltou a interessar as pessoas, no Brasil e na Europa, desde um relativo questionamento de nossa teoria genérica sobre o funcionamento mental resumido à combinação de neurocircuitos cerebrais e disciplinas de aprendizado dirigido.

Durante os últimos quarenta anos propagou-se a aposentadoria da humanidade profunda e misteriosa, cheia de áreas inexploradas. Em vez disso vimos surgir um regime geral de transparência e de funcionalidade na relação com nós mesmos.

A subjetividade neoliberal, surgida a partir dos 1980, nos convida a olhar para nós mesmos como gestores de nossos desejos, afetos e histórias.  Em vez de conflitos e proibições, passamos a olhar para a vida como um gradiente de potências e impotências, onde termos como intensidade, distância e ambiência determinam nossa experiência. Não tendo mais contas a ajustar com nossa história, tornava-se desnecessário o trabalho de criar uma narrativa muito consistente sobre nós mesmos.

Em meio à inconstância e liquidez da vida, dos empregos e dos amores, a identidade deveria ser sobretudo flexível. Tornando-se senhora e proprietária de sua própria morada a consciência de cada um, deixou de ser afetada por transes, duplicações ou desdobramentos. Por outro lado, emergiu um grande interesse por influenciadores, personalidades e celebridades, que exerciam um efeito "hipnótico" sobre os outros.

A própria literatura teria incorporado este paradigma neoliberal, substituindo o antigo romance, de investigação e interiorização, por relatos onde o sofrimento é posto em forma descritiva. São os neuromances, que exploram condições cerebrais ou genéticas, como Parkinson em "As Correções", de Jonathan Franzen; Alzheimer no "Diário da Queda", de Michel Laub; delírio de Capgras, no "The Echo Maker", de Richard Powers;, doença de Huntington no "Sábado", de Ian McEwan.

Isso não quer dizer que todos os impasses da vida foram abolidos. Continuamos a nos entender como seres traumatizados, com lutos insidiosos, sofrendo com nossa sexualidade e com a imagem desajustada de nós mesmos. Os desajustes narcísicos e os seus crônicos sentimentos de menos-valia, solidão e falta de sentido fizeram da depressão a rainha da psicopatologia, junto com ela veio o sonho de uma vida boa trancada e protegida dentro de um quarto branco onde poderíamos manipular todos os estímulos e nos proteger do excesso deles em nosso próprio "condomínio mental".

Quando o sofrimento perde sua potência de transformação, ele se torna mais uma tarefa a ser resolvida: individual ou quimicamente. Depois de 50 anos de expansão da subjetividade imunológica, autotransparente e cerebral, começamos a perceber que a promessa antidepressiva e a felicidade encapsulada não vai ser entregue na forma como nos foi prometida. Por isso assistimos a uma espécie de retorno da psicanálise. Mas antes de Freud é o contexto que tornou sua descoberta possível o que parece reemergir e junto com ele o hipnotismo.

Ao longo da primeira metade do século XIX prosperou um grande ideal de dominação da natureza, com empreendimentos coloniais, avanços científicos e racionalização da sociedade. Escolas, exércitos hospitais e o trabalho dentro das fábricas institucionalizaram nossa vida cotidiana e nos afastaram das comunidades orgânicas. Lá também, como agora, insinuava-se que nossas formas políticas iriam finalmente dobrar-se ao bom senso e ao senso comum da democracia parlamentar.

Contra esta hipótese, a partir da metade do século XIX o hipnotismo emergiu como um grande fenômeno enigmático. Ele atestava a sobrevivência de um tipo de autoridade pessoal, que não podia ser substituída ou praticada por qualquer um, um tipo de carisma de alta periculosidade política pois assinalava a persistência de personalidades capazes de exercer uma influência irracional sobre os outros. Durante os anos 1950 muitos hipnotizadores encantavam plateias pelo Brasil afora. Contudo, o temor que este fosse usado como arma política levou o presidente Jânio Quadros a proibir a prática do hipnotismo no Brasil, em 1961.

Mesmer, Lièbault, Charcot e Bernheim foram grandes hipnotizadores do século XIX. O primeiro cruzava a Europa colocando mulheres da aristocracia sobre mesas com limalhas de ferro, que uma vez postas em movimento, faziam renovar energias e curar doenças. O segundo atendia centenas de camponeses diariamente. Com suas palavras de alívio facilitava partos, removia angústias e restaurava o funcionamento digestivo. O terceiro era um reputado professor que empregava o hipnotismo para reproduzir sintomas histéricos diante de uma plateia de médicos, jornalistas, poetas e pintores. O quarto vasculhava a literatura e investigava hipnotizadores para entender, cientificamente, como funcionava a sugestão capaz de levar as pessoas a se comportarem como animais ou crianças diante de um público boquiaberto.

Quando estava em minha lua de mel em Salvador passei por uma experiência hipnótica muito curiosa. Mulheres que leem mãos ficam circundando algumas praças daquela cidade. Sabendo da sua existência e sabendo que seu intuito é tirar algum dinheiro de turistas incautos, logo me pus valente avisando minha esposa de que não me deixaria hipnotizar e poderia provar isso. Ela, como sempre cautelosa, me fez deixar a carteira, mas levar uns R$ 20, que era o preço da aposta. Mal dei minha mão para a figura e ela começou a falar muito rápido sussurrando coisas de forma meio impositiva mas agradável. Com certo carinho ela ia passando o dedo pela minha mão, quase gerando cócegas. Obviamente, quando acordei minha esposa estava rindo de mim e no meu bolso faltavam R$ 20.

Alterações de consciência como esta são um fenômeno natural que ajuda dentistas a operar pacientes sem anestesia e pessoas com fobias a embarcarem em aviões. Todos estes autores inspiraram Sigmund Freud a criar a psicanálise. Ele estudou com Charcot em Paris, encontrou Lièbault na floresta de Nancy, traduziu textos sobre hipnotismo com Bernheim e conhecia as peripécias de Mesmer, que teve sua forma de cura investigada pela famosa comissão da Academia Francesa de Ciências, formada por Lavoisier, Benjamin Franklin e Jussieu que declarou ao final: a teoria é falsa, mas seus efeitos são reais.

Depois de anos praticando a cura de sintomas neuróticos por meio do hipnotismo, Freud percebeu que seus efeitos acabavam decaindo ao longo do tempo, que ele não conseguia hipnotizar todas as pessoas e que o hipnotismo não tocava a causa dos sintomas, mas mesmo assim jamais negou a eficácia relativa da cura por sugestão.

O hipnotismo não se aproveita, de fato, do sono, mas de uma alteração da consciência. Essa alteração é mais favoravelmente criada pela associação entre um estímulo sensorial, geralmente repetido ou sincronizado, com a voz e a sugestão do hipnotizador. Depois de ceder a pequenas ordens, que vão criando um estado de assentimento e fortalecendo a autoridade do hipnotizador, o sujeito acaba entrando em uma espécie de transe no qual se põe a obedecer ordens.

Podemos nos auto-hipnotizar quando estamos em um trem ou em um ônibus que repete movimentos, aproveitando-se de outra condição que favorece o rebaixamento da consciência: o cansaço. Estados de massa, aglomeração ou apaixonamento também nos inclinam a sugestionabilidade hipnótica. Mas, por mais que estejamos propensos a obedecer certas ordens, inclusive para não sentir dor ou medo, não conseguimos fazer a pessoa realizar um ato que confronte sua moralidade diretamente, por exemplo, hipnotizar alguém para que este cometa um crime por nós.

Por isso seria difícil para Pyong Lee simplesmente hipnotizar todos os seus adversários no Big Brother de modo a vencer a competição. A emergência de estados alterados de consciência, o interesse pelos desdobramentos de nós mesmos talvez sejam um bom caminho para voltarmos a confiar menos na soberania de nossas crenças e opiniões e um convite a escavar um pouco mais as origens de nossas tendências à obediência e à manipulação.

No mesmo Big Brother vimos emergir esta prova obscena chamada quarto branco. Ela consiste em manter três pessoas em uma sala com baixa variação de estímulos até que um deles aperte um botão de desistência disponível no centro do recinto.

Se a hipnose é um prática acessível a todos, e que não representa fonte de malefícios, sua combinação com situações de confinamento dentro do confinamento, de restrição de movimentos e de saturação sensorial, parece ser o símbolo de uma época que nos obriga a sonhar apenas com a evasão ou permanência.

Se o hipnotismo é a indicação clara de que não somos senhores em nossa própria morada, que nossa consciência se divide e se altera, nem sempre ao gosto de nossa vontade, o quarto branco é o símbolo da autodeterminação e do domínio gerencial da própria vontade, exposta ao desfio de suportar a existência do outro.

Fascinados pelo drama alheio, rindo de como o outro pode ser tão facilmente manipulado, presos em nossos quartos brancos, diante de nossas telas hipnóticas, aguardamos o hipnotizador que nos faça acordar com um estalar de dedos.

Sobre o Autor

Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor do Departamento de Psicologia Clínica e coordenador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Universidade de São Paulo)... além de youtuber.

Sobre o Blog

Aqui vamos discutir o impacto da linguagem digital e das novas tecnologias nos modos de produção de subjetividade, nas formas de sofrimento e na capacidade de inventar sonhos à altura de novos mundos por vir.