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Blog do Dunker

Debate com o leitor: como a abstinência sexual serve ao discurso do governo

Christian Dunker

25/02/2020 04h00

Isac Nóbrega/PR

Minha última coluna "Em nome de Jesus? Política de abstinência sexual tem base na Bíblia?" recebeu inúmeros comentários e críticas, tanto no próprio site quanto de internautas das redes, por isso resolvi debater com as colocações que me pareceram tão ricas quanto ilustrativas do estado da arte, da questão e da conversa.

De certa maneira o significante "abstinência" situa-se em uma espécie de encruzilhadas entre diferentes narrativas. O termo procede do verbo abster, ou seja, limitar, controlar, impedir-se de. A abstinência é um critério genérico de autonomia pois indica capacidade de se autoconter, sugerindo que a lei não opera sobre você desde fora, mas a partir de seu próprio consentimento e incorporação.

Já defendi anteriormente que a capacidade de se limitar é uma virtude política importante. Ela indica certa relação ao poder, desejável em nossos governantes. Recentemente essa sugestão parece ter sido aplicada de forma invertida na mente do eleitor: a falta de continência, decoro e delicadeza tornou-se signo de autenticidade, espontaneidade e confiança. Bolsonaro, e isso parece ser contagioso nos que dele se acercam, não consegue abster-se de falar bobagens, ofender e mentir.

O leitor Alexandre Machado observa que convicção exagerada é um traço ético perigoso. A certeza do que se está certo ou errado, evidenciada pela recusa ao debate ou pela evitação do confronto de ideias é uma resposta que cativa os incautos. Dar seguimento e consequência para conversações de longo curso, como é o caso das políticas públicas, exige trabalho de justificação e esforço para encontrar e expor razões.

De certa maneira, o exotismo discursivo do governo Bolsonaro tem sido eficaz em desativar o debate. Isso vem ocorrendo desde a fuga do candidato dos debates eleitorais e continua agora como prática de governo. A convicção de que é impossível debater seriamente com quem defende a abstinência sexual como política pública permite que a oposição silencie, achando que isso é uma cortina de fumaça, que desvia o verdadeiro assunto importante que é a economia. Ademais, rebater as sandices discursivas do governo deixa que a direita controle a pauta.

Nada pior do que embarcar nesta teoria de que as palavras não importam, que o que realmente faz diferença são as reformas que caminham de um modo ou de outro no Congresso e na Câmara. Essa separação é a essência da estratégia do governo e a esquerda não devia concordar com isso. Por exemplo, a política pública de evitação da gravidez precoce por meio da abstinência sexual não é apenas um falso preceito bíblico, um "Fake-Book", mas uma forma barata de retirar recursos necessários da educação sobre a sexualidade, sem gerar constrangimento ou resistência. O Estado se desincumbe e todos batem palminhas, em nome de Jesus. Nunca foi tão barato politicamente retirar direitos e reduzir gastos sociais como agora. 

É o mesmo truque que está sendo aplicado na economia: "Estamos quebrados, é preciso uma política de austeridade, o Estado precisa gastar menos, precisamos equilibrar as contas públicas e diminuir o investimento direto." Todo mundo bate palmas para o discurso da abstinência.

A psicanálise nos ensina que este tipo de discurso precisa de uma contraface obscena, na qual a abstinência que se prega de um lado aparece como exagero, desmedida e falta de compostura do outro. Por isso, golden shower, delírios sobre indígenas e ecologia, a criação do monstro PT e a afronta contra a jornalista Patrícia Campos Mello são uma necessidade de discurso, não uma espuma flutuante feita para tirarmos os olhos do que é realmente importante. Como se um lado do discurso dissesse: austeridade, limitação de gastos, redução de juros, abstinência sexual, humildade bíblica. E a outra dissesse: não te estupro porque você não merece, até empregada doméstica viaja e o seu buraco é mais embaixo. Você compra um lado e leva de brinde o outro, sem se dar conta disso.

Esse mesmo discurso tentará te convencer que economia é uma coisa, moral é outra. Ele também te dirá que a mítica de um novo início está presente em ditaduras como as da Coreia do Norte ou o nazismo alemão, mas não no que se está a praticar agora.

Luis Quintero/ Pexels

Historicamente, a religião tem sido o berço narrativo de onde se extrai legitimidade para impedir que vejamos esta contradição. Isso não tem nada que ver com a Bíblia ela mesma, mas baseia-se no fato de que a Bíblia retrata tempos nos quais a escravidão era permitida, onde reis e imperadores exerciam seu poder de modo autocrático, simplesmente porque retrata as formas políticas correntes ao longo da história da sua escrita. Por isso, ela está farta de bons exemplos, morais e reflexões éticas, que seriam intemporais, mas péssimas para orientar a soluções de conflitos políticos.

Por exemplo, Marcio responde ao meu desafio sobre onde estão os fundamentos bíblicos para a abstinência como método para evitação de gravidez precoce citando Paulo em Carta aos Coríntios 1.7.

Se conseguir se segurar, que permaneça solteiro, mas se não conseguir se case."

Ou em outra tradução:

Caso, porém, não se dominem, que se casem, porque é melhor casar do que viver abrasado."

Dois exemplos óbvios de como o que o texto sagrado proclama uma defesa do casamento e não da abstinência.

Se a política pública do governo fosse "case-se mais cedo", poderíamos dizer: "não concordo, mas está na Bíblia".

A sabedoria bíblica é clara: "se você não se contém, case-se mas não viva em estado de abrasamento". Se a passagem justificasse a abstinência ela deveria dizer: "caso, porém, não se dominem, permaneçam em estado de abrasamento até conseguir se casar".  Pelo amor de São Dimas a tarde! O texto bíblico parte da ideia e admite a situação onde "não conseguimos nos conter", e não sugere em tempo algum a tolice de que "aqueles que não conseguem se conter devem se conter assim mesmo".

Além da rarefação de passagens bíblicas que justifiquem a abstinência sexual, grande número de leitores, em vez de apresentar qualquer evidência textual, simplesmente gritavam coisas como "fornicação é pecado" ou "sexo antes do casamento é fornicação". Isso vai ao encontro do que sugeriu Guilherme Arbache lembrando que o terrorismo tem uma relação ambígua com o texto sagrado: por um lado acredita aplicar uma lei literal inspirada por uma autoridade imemorial e por outro cultiva o analfabetismo bíblico, contando com a ignorância alheia.

O fato é que dos mais de 30 mil leitores da coluna nenhum conseguiu me apresentar um fragmento sequer que justificasse a aura bíblica da política de Damares.

Por outro, lado, muitos comentários dizem que a Bíblia não importa. Que nossa política é laica pois exige separação constitucional entre Estado e Igreja.

Paulo Roberto Nascimento lembra que o Estado não deve se intrometer no comportamento sexual das pessoas. Outros ainda entendem que não se pode levar a sério as declarações da ministra, afinal a política pública não significa obrigatoriedade: "a ministra apenas recomendou e ninguém é constrangido a segui-la. A questão é exclusivamente de foro íntimo, independente de Bíblia, Corão ou Talmud". Típico exemplo da alternação público e privado praticada pelo discurso do governo. Ou seja, quando interessa é a função pública, quando não interessa é a pessoa que fala. Cara eu ganho, coroa você perde. Com esta estratégia o governo vem conseguindo fidelizar seus defensores e neutralizar seus críticos.

Infelizmente uma política pública implica em gastos, ela gera ações do Estado, seja em escolas, hospitais ou em campanhas de esclarecimento. Quem paga por isso? Você, eu e todos nós. Mas o comentário reflete como recebemos as afirmações disparatadas do governo: como se elas não tivessem consequência, como se elas não tivessem custo, como se elas fossem inofensivas e não como uma operação para tirar investimento e proteção social sem ter que pagar a conta política por isso.

Outros leitores apontam que Damares quer introduzir uma ideologia de classe evangélica em um país marcado pela diversidade religiosa. É verdade, mas uma verdade amarga. O governo não é pluralista nem inclusivo. Ele decidiu-se por uma política discursiva na qual os poucos que lhe são leais são os que importam. Os outros se tornarão, mais cedo ou mais tarde, inimigos. Acho que a imprensa foi a primeira vítima deste procedimento.

Vários leitores observaram que o uso da palavra bíblica, da maneira como Damares procede, desconhece a interpretação histórica da bíblia. Aliás, aprendi com o pastor Henrique Vieira que o Jesus histórico deve ser distinguido do Jesus espiritual, caso contrário o uso ideológico da religião se torna muito problemático. Entram neste caso observações como as de que o casamento na época bíblica se dava aos treze anos, o que não pode ser transposto para uma cultura como a nossa onde nos casamos, em regra, depois dos vinte.

O problema com a aplicação a-histórica da lei bíblica é presumir que a lei nunca muda ou que ela mudou até certo momento, depois disso foi congelada. Isso nos leva a um interessante problema teológico: será que Deus muda com o passar do tempo? Será que ele se transforma? Se sim, isso sugere que ele mesmo depende de como é percebido pelos seres humanos, que Ele não é o mesmo no século XVI, no século V ou no século XXI. Se Ele não se altera, Ele não pode voltar atrás no que diz. Se isso é verdade, Deus não pode se corrigir ou se limitar. Ora, um deus que é incapaz de autoabstinência, é um deus ao qual falta alguma coisa, um predicado que, como vimos, é muito importante para assuntos políticos: a capacidade de se abster. Se falta algo a Deus ele não é perfeito, pois a perfeição presume que ele tenha todos os predicados, especialmente os desejáveis. Se ele não é perfeito, isso é uma severa ameaça à sua existência enquanto ente ilimitado, eterno, infinito e perfeito.  

Acho que precisamos de mais teologia ou de menos religião na política brasileira.

Sobre o Autor

Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor do Departamento de Psicologia Clínica e coordenador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Universidade de São Paulo)... além de youtuber.

Sobre o Blog

Aqui vamos discutir o impacto da linguagem digital e das novas tecnologias nos modos de produção de subjetividade, nas formas de sofrimento e na capacidade de inventar sonhos à altura de novos mundos por vir.