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Até que ponto os aplicativos que prometem ajudar na saúde mental funcionam?

Christian Dunker

22/09/2019 21h18

Freud no Uruguai Crédito: Christian Dunker

Há uma crise global em relação a saúde mental. Taxas de suicídio crescem, em todos os continentes e em todas as faixas etárias[1]. Afastamentos crônicos do trabalho e a situação de sofrimento ascendente em contexto escolar, de graduação e pós-graduação tornou-se um problema de saúde pública em vários países[2]. O sentimento social de solidão aumenta em pelo menos 1.5% de geração em geração[3]. A crise de consumo de opióides nos Estados Unidos[4],  o fracasso das políticas de criminalização de uso de drogas e o crescente reconhecimento de que os efeitos da desigualdade social sobre a saúde psíquica são incontornáveis e devastadores fazem parte deste quadro.

No Brasil a procura por hospitais-dia e consultas psiquiátricas subiu 200% em seis anos e as demandas de consultas com psicólogos em planos de saúde mais que dobraram[5]. Diagnósticos de ansiedade, depressão e dependência de substâncias se multiplicam, particularmente nas grandes cidades, colocando São Paulo entre as capitais mundiais de transtornos mentais[6]. A percepção de mal-estar generalizado no interior de nossas formas de vida soma-se com o aparente colapso de nossos recursos naturais para lidar com o sofrimento psíquico.

 A situação torna-se ainda mais crítica quando olhamos para os recursos especializados para enfrentar o problema. Um interessante experimento conjectural aponta que se reuníssemos todos os profissionais com formação específica em saúde mental em todo o mundo (psicólogos, psiquiatras, psicanalistas, terapeutas ocupacionais, social workers, conselheiros escolares, etc.), na Inglaterra, no país reputado como o que conta com melhores equipamentos e mais capilaridade de cobertura, não chegaríamos a atender mais de 35% da demanda[7].

Ou seja, se dobrarmos o número de especialistas existentes hoje no mundo ainda assim haveria um déficit de 30% nos recursos humanos disponíveis, para enfrentar a crise em um único país. É tolice imaginar que o enfrentamento desta situação pode ser feito recorrendo apenas pela estratégias de multiplicação e acesso à especialistas. Tão tolo quanto dispersar medicação psiquiátrica nas nossas caixas de água, como foi aventado anos atrás por certos pesquisadores. Simplesmente não há especialistas para todos e nem qualquer perspectiva de que, mesmo com investimentos massivos em formação de pessoal, isso faça qualquer diferença significativa no quadro geral.

Isso nos ajuda a entender a emergência de práticas tradicionais de cura, de formas mágico religiosas de enfrentamento do sofrimento humano, assim como técnicas discursivas de autoajuda e até mesmo o recente caso de florescência do coaching. Há uma mudança na diretriz brasileira de saúde mental que estabelece que qualquer profissional em saúde deve estar habilitado a prestar auxílio básico ao sofrimento psíquico.

A própria psicanálise, tida como a mais elitista das práticas psicoterápicas está criando a experiência das clínicas abertas ou clínicas públicas de psicanálise, como a da praça Roosevelt e a da casa do Povo em São Paulo, mas que se espalham capilar e profundamente pelo Brasil afora. Ainda assim, as causas e a extensão real da crise global em saúde mental são objeto de caloroso debate acadêmico e político.

Há os que advogam que tal crise decorre do aumento de nossa exigência de bem-estar, ou seja, com a ascensão de um discurso que promete uma vida realizada e feliz, a nossa miséria existencial de sempre se tornou muito mais dolorosa. Neste sentido estaríamos diante de uma crise induzida pela hipertrofia de ideais narcísicos do que seria uma vida boa, processo que teria sido estimulado pela chegada da vida digital e suas redes sociais.

Tendo chegado ao momento de amadurecimento de uma primeira geração de nativos digitais, nascidos depois de 1995, só agora estamos pagando a conta de um modo de criação de crianças com babás-tablets, mães-helicópteros (que ficam monitorando os filhos digitalmente), famílias não presenciais em meio ao silêncio dos smarphones,  amigos-"networkizados", sem falar no sexo-aplicativo e dos amores e ódios imateriais em estrutura de WhatsApp.

Outros apostam que isso não teria sido suficiente sem a reorganização neoliberal do mundo do trabalho, com suas cargas de dedicação extorsivas, com seus processos de gerenciamento de pessoas baseado na administração calculada de doses se sofrimento necessárias para aumentar a produtividade: políticas de bônus, confrontos organizados entre departamentos e áreas de uma mesma empresa, Big Brother permanente na eliminação dos mais fracos, microgestão e avaliacionismo, precarização e uberização dos trabalhadores. Quando o conceito neoliberal de gestão, tornou-se sinônimo de gestão de sofrimento, algo começou a mudar em nossos patamares de saúde mental.

Uma terceira linha de interpretação dirá que a crise na saúde mental está superfaturada como efeito da expansão de diagnósticos. Em 1956, quando foi criado o sistema americano de classificação havia 106 transtornos mentais, em 1980 eles passaram a ser 265, em 1994 chegamos a 297.

A classificação de 2013, atualmente em uso, bastante semelhante aos critérios da Organização Mundial de Saúde nos levou à exaustão da improdutividade clínica. Sua ausência de marcadores biológicos sendo questionada mundialmente gerou cortes de investimentos e novos sistemas de diagnóstico, como o Research Domain Criteria. Sua recusa a discutir seriamente a casualidade dos sintomas, sua fragilidade científica em explicar a ação das medicações e as suspeitas éticas em torno dos valores pagos aos psiquiatras e pesquisadores pelas empresas farmacêuticas vieram a tona de uma só vez, pouco antes de nos apercebermos da magnitude da crise global em saúde mental.

A quarta linha de entendimento para a crise na saúde mental cruza perspectiva econômica com a clínica. Durante vinte anos popularizou-se o conceito de os transtornos mentais são disfunções cerebrais crônicas. Assim como o diabético não produz insulina o depressivo tem uma deficiência de serotonina ou dopamina, de tal forma que bastaria compensar este déficit regulando estes neurotransmissores.

Surgiu assim uma trivialização das medicações psiquiátricas, muitas vezes receitadas por médicos generalistas, e em automedicação indefinidamente renovada. Esta teoria incentivou, ainda que indiretamente, a concepção de que a saúde mental equivale ao estado de bem-estar e conforto da paisagem mental. Ela serviu para consolidar  a ideia de que conflitos e angústias, assim como afetos hostis ou desagradáveis deveriam ser eliminados, representando, por si só um problema.

Também a linguagem digital estimulou a ilusão de que o mero controle ambiental, por exemplo, bolhas de auto-segregação ou condomínios virtuais e reais, constituem a estratégia elementar para tratar diferença, contrariedade e conflito. Isso significou, na prática substituir o tratamento de conflitos pela evitação de conflitos por meio de modulação da realidade, psíquica ou material. Ao final, gerou-se uma hipermedicalização massiva na qual crianças que consumiam metilfenidato tornaram-se adolescentes tratados à base de moduladores de humor.

Jovens adultos ansiosos que dormiam à base de soníferos tonaram-se adultos desempregados que funcionam à base de antidepressivos. Para não falar nos idosos que combinam antipsicóticos com as maravilhas das pílulas de recuperação da libido. Tudo isso operando em combinação ou substituição com a versão B baseada em substâncias recreativas ou com a versão C, fitoterápicas. Com o declínio da eficácia dos antidepressivos, o acúmulo de efeitos colaterais em uso de longo prazo e com a relativização dos resultados das chamadas psicoterapias baseada em evidências cientificas o cenário começou a mudar.

Neste contexto emergem os aplicativos de saúde mental. Eles podem ser divididos entre:

  • Terapias pela fala, que usam sistemas de teleconferência para colocar pacientes e terapeutas e contato remoto, baseando-se na adaptação das estratégias psicoterapêuticas ao contexto digital.
  • Aplicativos que ensinam e administram técnicas de relaxamento, meditação como o mindfulness, na qual há uma reapropriação da presença e do tempo, incluem-se aqui os aplicativos que ajudam a reconhecer e gerenciar emoções, estimulam a auto-observação psicológica de si, a escrita ou representação de conflitos e dificuldades.
  • Grupos de apoio e testemunho, no qual a construção de narrativas em comum estimula o esclarecimento e a descoberta de estratégias de suporte oferecendo imediatamente experiências compensatórias de reconhecimento e pertencimento.
  • Programas de autodiagnóstico que auxiliam a detectar estados de crise, urgência ou sinais críticos de vulnerabilidade psíquica.

Esta divisão alinha-se com as hipóteses mais correntes sobre a crise global em saúde mental, que apresentamos acima. Os que sofrem com problemas de performance e desempenho, ou que precisam regular sua relação com o tempo, quer pela aceleração, quer pelo foco, quer pela lentificação, encontrarão um antídoto nas estratégias de meditação ou no gerenciamento da vida cotidiana incluindo aplicativos de gamificação ou de administração de problemas por listagem e prioridades. Os que sofrem com a corrosão da intimidade, com a solidão e inadequação buscarão o auxílio de comunidades digitais. Os que estão em busca de um nome que os localize na geografia do mal-estar, permitindo autoavaliações e acompanhamento encontrarão aplicativos baseados em provas e testes. Finalmente, os que sofrem com problemas intersubjetivos, geralmente associando e sobrepondo os casos anteriores ou com o caráter crescentemente tóxico das relações demandam a recuperação de experiências mais pessoais, envolvendo o uso livre ou expressivo da palavra e uma relação mais aprofundada com seus terapeutas ainda que estes estejam geograficamente distantes.

A partir dos anos 1990 os americanos enfrentaram uma crise de saúde mental entre seus soldados que ocupavam o Oriente Médio e o Afeganistão. Na impossibilidade de levar um número razoável de especialistas para o outro lado do mundo o exército, desenvolveu um conjunto de Terapias por Manual, ou seja, roteiros que deveriam ser seguidos por qualquer um para abordar os sintomas mentais dos combatentes.

A eficácia desta abordagem mostrou-se muito limitada, ainda que não totalmente desprezível. Ao que tudo indica a qualidade da relação com o outro é o elemento chave dos processos transformativos em psicoterapia. Portanto, se tivéssemos que fazer uma apreciação geral sobre o uso dos aplicativos de saúde mental teríamos que ponderar que:

  • É preciso aumentar a consciência e importância do sofrimento psíquico como condição reversível e tratável da experiência humana. Ele não é uma deficiência moral, falta de vontade ou de fé, muito menos acumulação de maus hábitos e falta de disciplina. Sintomas psicológicos podem ser tão graves, dilaceradores e dolorosos quanto qualquer outra doença.
  • Aplicativos constituem um recurso relativamente barato e acessível em escala de massa em uma matéria na qual precisamos mobilizar todo o contingente de estratégias disponíveis, inclusive as não técnicas ou especializadas. Mas, use-os com moderação e não espere dos recursos, seja, eles discursivos ou medicamentosos, o que eles não podem dar. Terapia é como fazer uma mágica. Você coloca o coelho na cartola, ele sai de lá depois. Se você investe e se dedica com cuidado o efeito acontece, mas se você espera grandes transformações sem nenhum trabalho, está pedindo para ser enganado, ou para se tornar dependente.
  • Deveríamos estar atentos para não nos intoxicarmos com o mesmo veneno que está causando parte do problema. Por exemplo, nem sempre tratar sua dependência no uso de aplicativos com mais um aplicativo será uma ideia realmente genial. Aplicativos que vendem "felicidade" em tempos nos quais o imperativo de felicidade é uma das causas de nosso mal-estar devem ser evitados.
  • Um bom terapeuta é pago para te dizer coisas que você não quer ouvir, ou não está conseguindo escutar. Aplicativos ou grupos de apoio que apenas devolvem o que você já sabia, que baseiam-se no aumento de convicções ou na sugestão de práticas que não fazem muito sentido para você podem esperar. Um problema crucial dos aplicativos é que eles contornam a principal dificuldade "operacional" das psicoterapias, ou seja, o fato de que elas são uma experiência pessoal. As respostas devem servir para você e não para alguém que é o "seu tipo" ou que tem o mesmo diagnóstico que você.
  • Transtornos mentais e sofrimentos psíquicos são gerados no contexto de relações humanas, mediadas pela linguagem, no interior de um sistema de produção e troca social, material e simbólico. Portanto, estratégias demasiadamente impessoais, mecânicas ou meramente orientada para a restauração de objetivos e metas devem ser encaradas com reserva.
  • Não deixe que más experiências com aplicativos, com medicações ou com terapeutas afetem seu desejo de enfrentar o sofrimento psíquico e as limitações que ele traz para a vida, para as relações e para a sua produtividade. Nesta matéria cada qual deve encontrar seu caminho, assim como se responsabilizar por cuidar de sua travessia.

[1] https://www.who.int/mental_health/prevention/suicide/suicideprevent/en/

[2] https://www.theguardian.com/society/2019/apr/17/mental-health-young-people-england-crisis-point-teacher-school-leader-survey

[3] https://www.usnews.com/news/health-news/articles/2018-12-18/3-in-4-americans-struggle-with-loneliness

[4] http://www.healthdata.org/infographic/opioid-deaths-us

[5] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/09/internacoes-em-hospital-dia-de-saude-mental-triplicam-no-pais.shtml

[6] http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-44462009000400016

[7] https://www.thefix.com/lack-mental-health-resources-global-issue

Sobre o Autor

Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor do Departamento de Psicologia Clínica e coordenador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Universidade de São Paulo)... além de youtuber.

Sobre o Blog

Aqui vamos discutir o impacto da linguagem digital e das novas tecnologias nos modos de produção de subjetividade, nas formas de sofrimento e na capacidade de inventar sonhos à altura de novos mundos por vir.