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Blog do Dunker

A internet das coisas e a bolha: você é o que você consome e sempre será?

Christian Dunker

23/08/2019 04h00

Glasgow

A internet das coisas (Iot) permite que objetos e aparelhos encontrem relações funcionais, padrões de antecipação, autoregulação e controle online. A partir da manipulação de uma torradeira à distância, desenvolvida nos anos 1970, com auxílio de mecanismos robóticos, passou-se para a noção de casa inteligente e de cidade inteligente. Controle de estoques e logística, segurança e biomedicina, circulação de pessoas, operações de compra e venda, alteraram o patamar de eficiência das interações.

Hoje, não entendemos mais o problema da consciência em termos da oposição entre  máquina e homem. Aprendemos que a definição do que seria humano é frequentemente sobredeterminada pelas máquinas que dispomos para nos autodescrever. O livro em branco no século XVI, o relógio no século XVII, o motor no século XVIII, os autômatos do século XIX, os sistemas eletrônicos século XX e os computadores quânticos do século XXI, a cada revolução técnica um novo ser humano. Neste processo a arte teve papel decisivo ao mostrar, historicamente, que o protótipo de toda artificialidade é também o modelo maior de redescrição do que chamamos humano. Recursivamente a arte também transforma-se pela incorporação das máquinas de seu tempo: os dispositivos de perspectiva, a câmera escura, a fotografia e o cinema, as instalações e realidades artificiais.

Não seria difícil considerar a existência de roupas inteligentes, de aparelhos conexos ao corpo que melhoram sua performance ou que garantem sua funcionalidade, por exemplo, administrando dosagens exatas de medicação à distância, informando online variações dos estados de corpo aos dispositivos de saúde ou ao "algoritmo de conforto psíquico" ou de que cada qual pode programar para si. Monitorando permanentemente os dados vitais de alguém muitas intercorrências médicas poderiam ser controladas, com custo menor e maior acuracidade, em nível de profilaxia sem precedentes. Neste sentido a internet da "regulação da paisagem mental" poderia operar pela administração controlada de psicoativos responsáveis pela manutenção ou indução artificial de estados psíquicos cuja gramática seria previamente definida. Desta maneira nunca seríamos ofendido por um filme, livro ou propaganda que contraria, inadvertidamente, imagens que considero indesejáveis. Mecanismos interpessoais de regulação, poderiam evitar as chamadas "paixões tristes" pela intensificação da tristeza, enviando estimulações automáticas para amigos, em disponibilidade para o "match" afetivo. A detecção de excessos impulsivos mobilizaria apaziguadores. Ódios disruptivos desencadeariam exposição controlada de mensagens pacificadoras. Um dispositivo armazenador de estratégias anteriormente bem sucedidas poderia prevenir a angústia ou a ansiedade, serviria de simulador para o controle de nossa gerência de emoções como no filme "Divertidamente".

Considerando apenas o circuito dos afetos e o narcisismo é possível que a subjetivação digital torne-se um horizonte próximo, para os quais as redes sociais teriam sido apenas um laboratório preliminar. E se tudo o que descrevi acima já estiver acontecendo. Por meio dos algoritmos que mediam nossas relações nas redes sociais e nos nossos circuitos de consumo, tudo o que queremos, sem saber que queremos, (ou que não queremos, sem saber que não queremos), já nos está sendo ofertado. Neste caso estaríamos diante do problema que Kant chamou de paradoxo da vontade. Ou seja: sou livre para escolher o que quero, mas será que posso realmente escolher livremente mudar de querer? Cuja versão psicanalítica seria: será que sou capaz de saber o quero naquilo que estou pedindo?

Se a resposta for afirmativa seria preciso estruturar nossas experiências para além do  rastro de memória que elas deixam atrás de si, sob forma de registros de consumo. Nossas decisões cognitivas e desejantes, estéticas e políticas, assim como outras afinidades eletivas não são acumuladas de modo inerte. Elas trabalham em silêncio produzindo reacomodações e sonhos. Sobre elas aplicam-se algoritmos, que controlam regras de exposição e restrição de conteúdo, de relação frequencial e de interpelação.  Por mais intrincados e abrangentes que sejam tais algoritmos, eles operam sob tais registros segundo uma regra geral: quanto mais, mais; quanto menos, menos. Baseando-se nesta espécie de meta-regra começamos a perceber que certas alternativas nos são mostradas quando entramos em uma rede social ou quando retornamos a um site de compras. Se você pesquisa sobre testes de gravidez, logo em seguida poderá receber um anúncio de carrinhos de bebê. O funcionamento teológico e "milagroso" da paisagem virtual reduz a nitidez de outros caminhos e demais alternativas das quais somos desavisadamente excluídos. Quando seguimos nosso próprio padrão de consumo, os algoritmos nos devolvem nosso viés de confirmação do mundo e de nossas expectativas, filtradas pelos Outro digital.

Desta maneira nos tornamos necessariamente e cada vez mais "nós mesmos", recebendo de volta nosso próprio viés de auto-confirmação e admirando exponencialmente nossa própria identidade. Se isso ganha em funcionalidade adaptativa, mas traz consigo uma nova patologia: a obrigação de ser cada vez mais você mesmo dentro de seu condomínio digital.  Sair desta bolha não vai ser fácil, por que qualquer movimento feito na direção de furá-la, será imediatamente incorporado ao seu algoritmo e fará parte da nova "super-bolha". A solução deste problema passa pela consideração de outra teoria do espaço e de seu impacto na subjetividade, não apenas estar dentro ou estar fora, estar na bolha ou fora dela.

Sobre o Autor

Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor do Departamento de Psicologia Clínica e coordenador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Universidade de São Paulo)... além de youtuber.

Sobre o Blog

Aqui vamos discutir o impacto da linguagem digital e das novas tecnologias nos modos de produção de subjetividade, nas formas de sofrimento e na capacidade de inventar sonhos à altura de novos mundos por vir.